Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Duas das mais importantes democracias europeias acabaram de realizar as suas eleições legislativas periódicas. Em 4 de julho (uma quinta-feira), o Reino Unido elegeu os 650 membros de sua Câmara dos Comuns. Quase simultaneamente, nos dois últimos domingos (30 de junho e 7 de julho), a França elegia os 577 membros de sua Assembleia Nacional.
Apesar de terem sido eleições para o poder legislativo, elas também produziram impactos diretos sobre a composição dos governos dos dois países. De fato, os sistemas políticos do Reino Unido e da França são bem diferentes do brasileiro. Por isso, mais do que comentar sobre os vencedores e perdedores de cada disputa, gostaria de apresentar neste artigo – de forma didática – as principais regras de funcionamento de ambos os sistemas.
Comecemos pelo Reino Unido (que inclui a Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte). Os membros da Câmara dos Comuns são eleitos através do sistema conhecido no Brasil como “voto distrital puro”. Em cada um dos 650 distritos do país, elege-se o candidato individualmente mais votado (basta a maioria simples). Ao contrário do Brasil, a proporção de votos obtida por cada partido é irrelevante para o resultado das eleições.
Na votação popular, o Partido Trabalhista elegeu nada menos que 411 deputados (63,2% do total), o mesmo número de distritos em que foi majoritário. Num distante segundo lugar, o partido Conservador elegeu 121 deputados (18,6%) do total. Na terceira posição, o partido Liberal Democrata elegeu 72 deputados (11,1% do total). E as 46 cadeiras remanescentes da Câmara dos Comuns ficaram distribuídas entre dez pequenos partidos e candidatos independentes.
Como o voto distrital é um sistema orientado para a formação de maiorias legislativas, ele acaba produzindo enormes discrepâncias entre a composição do poder legislativo e as preferências do eleitorado. Apesar de terem feito quase dois terços dos deputados, os trabalhistas receberam apenas 33,7% dos votos populares. O contrário aconteceu com os conservadores, que tiveram mais votos (23,7%) do que cadeiras. No caso dos liberais-democratas (12,2% dos votos), houve equilíbrio. Mas os maiores prejudicados foram os partidos pequenos (cerca de 30) e os candidatos independentes que, conjuntamente, receberam os votos de 30,4% dos eleitores britânicos.
O segundo aspecto relevante do sistema político do Reino Unido é o sistema de governo parlamentarista, no qual não há uma votação popular específica para a chefia do governo. O poder executivo é comandado pelo primeiro-ministro, que será sempre o líder do partido com o maior número de cadeiras na Câmara dos Comuns. Assim, já no dia seguinte à data da eleição, o rei Charles III nomeou o trabalhista Keir Stamer como o novo primeiro ministro do Reino Unido. A última eleição vencida pelos trabalhistas havia sido em 2005, e desde 2010 o Reino Unido havia sido governado por uma sucessão de cinco primeiros-ministros conservadores.
Passemos então para as eleições na França, cuja cobertura pela imprensa brasileira foi muito maior do que a britânica. Cada um dos 577 deputados franceses representa um distrito eleitoral diferente, com a votação seguindo uma regra majoritária. No entanto, a votação acontece em dois turnos (em domingos subsequentes). No primeiro turno, elegem-se somente os candidatos que obtiverem a maioria absoluta (50% mais 1) dos votos em seus distritos. Nos demais casos, realiza-se um segundo turno apenas com os candidatos que ultrapassaram o patamar de 12,5% dos votos, onde se elege o nome com o maior número de votos.
Este ano, apenas 76 deputados franceses foram eleitos no primeiro turno. O veredito sobre as 501 cadeiras restantes ficou para o segundo turno (por lá conhecido como ballotage). O aspecto mais interessante desse sistema é que, no segundo turno, há fortes incentivos para o voto estratégico (ou voto útil, no jargão brasileiro), para reduzir as chances de vitória de nomes com forte rejeição. E foi exatamente o que aconteceu.
No primeiro turno, a coalizão de partidos de direita Reagrupamento Nacional obtivera 33,2% do voto popular, o que sugeria a possibilidade de o grupo formar maioria na Assembleia Nacional após o segundo turno. Na sequência, ficaram os partidos da coalizão esquerdista Nova Frente Popular (28,1% dos votos) e da coalizão Juntos, do presidente de centro Emmanuel Macron (com 21,3% dos votos). Para o segundo turno, estes dois últimos grupos se coordenaram para que, em cada distrito, apenas o candidato mais competitivo (de esquerda ou de centro) concorresse contra o candidato da direita.
A estratégia funcionou. Os blocos de esquerda e de centro fizeram as duas maiores bancadas no legislativo francês, com 182 e 168 deputados, respectivamente. E a coalizão de direita (com 143 cadeiras) saiu das urnas apenas como a terceira força política do país. Por outro lado, pela primeira vez na moderna história francesa, nenhum grupo parlamentar conseguiu atingir sozinho a maioria absoluta de 289 deputados.
Mas o sistema político francês tem uma segunda característica relevante: trata-se de um sistema de governo semipresidencialista, no qual o poder executivo é dividido entre um presidente eleito pelo voto popular (com mandato fixo de 5 anos, com direito a uma reeleição) e um primeiro ministro indicado pelo agrupamento majoritário na Assembleia Nacional. Na atual conjuntura, Macron está em seu segundo mandato (reeleito em 2022), e permaneceria na função qualquer que fosse o resultado das urnas agora. Mas ainda não se sabe quem será o próximo primeiro-ministro francês. No cargo há cerca de seis meses, Gabriel Attal (do mesmo partido de Macron) tende a ser substituído assim que a esquerda e o centro chegarem a um acordo para formar um governo de coalizão.
Estes dois estudos de caso sobre o funcionamento da política em dois importantes países da Europa mostra que muitos dos desafios políticos enfrentados pelo Brasil são, na verdade, comuns a todos os regimes democráticos. As semelhanças conosco não terão sido meras coincidências.
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