Antônio Paim, historiador das ideias, pensador da Cultura Brasileira e assessor da Fundação Espaço Democrático
Durante cerca de 15 anos, de junho de 1808 à proclamação da Independência, em 1822, Hipólito da Costa editou regularmente o Correio Braziliense, jornal mensal que compunha em Londres com o propósito de familiarizar a elite com o novo regime que deveria substituir a monarquia absoluta. Editado sem qualquer censura, correspondia o periódico a feito verdadeiramente extraordinário, tendo aberto o caminho para a compreensão do novo sistema político que ensaiava os seus primeiros passos no continente, depois de se haver consolidado na Inglaterra.
Hipólito da Costa nasceu em 1774, no extremo sul do País, onde seu pai (natural do Rio de Janeiro) servia nas tropas reais. Frequentou a Universidade de Coimbra e logo a seguir, em 1798, aos 24 anos, foi mandado estudar a experiência norte-americana, em matéria de agricultura, por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, então ministro da Marinha e do Ultramar. Permaneceu dois anos nos Estados Unidos. De volta a Portugal, liga-se à Maçonaria, acabando por ser preso. Após três anos de encarceramento, conseguiu fugir e refugiar-se na Inglaterra. Era então 1805. Em dezembro de 1822 deu por encerrada a carreira jornalística, ingressando nos serviços diplomáticos do jovem Império brasileiro, resultante da Independência. Chegou a ser nomeado cônsul-geral na Inglaterra, mas faleceu em setembro de 1823, antes de assumir o cargo. Tinha então 49 anos, dos quais 18 vividos na Inglaterra, onde casou e deixou descendentes.
O Correio Braziliense não tinha, tanto pelo formato como pelo conteúdo, feição de jornal, mais parecendo uma revista, para o nosso entendimento, havendo números com 200 páginas. Embora o autor buscasse comentar os acontecimentos, as dificuldades de comunicação não eram de molde a permiti-lo. Assim, só comenta a abertura dos portos, estabelecida em janeiro de 1808, no número de agosto. A notícia da insurreição pernambucana, iniciada a 6 de março de 1817, só é conhecida em Londres a 24 de maio. Por isso, quando o Correio (número de junho) chega ao Brasil (agosto), o movimento já havia sido abortado. Em razão de tais circunstâncias, revestiu-se sobretudo de caráter doutrinário. Além do mais, circulando sem censura, ele ocupa posição ímpar até a Independência. O Brasil não dispunha de tipografias, sendo a primeira importada por D. João VI para dar lugar à Impressão Régia (1808).
O Correio Braziliense comentou todas as obras que pudessem ser do interesse da elite então radicada no Brasil, com a mudança da Corte, mesmo quando editadas em inglês ou francês, dando-se ao trabalho de traduzir e transcrever o que lhe parecia essencial. Esse papel formativo refletia-se também nos comentários que dedicou à política europeia, notadamente o comportamento da Santa Aliança. Embora condenasse os descaminhos da Revolução Francesa, achava inúteis os esforços contra o constitucionalismo, movimento que lhe parecia “resultado do nosso estado de civilização, em direta oposição às formas estabelecidas em tempos bárbaros e apoiadas pela força dos senhores feudais; enfim, é uma guerra de opinião, contra a qual é ineficaz a potência física dos governos”. Neste passo escrevia: “A história da Revolução Francesa, a causa da aniquilação do poder de Bonaparte, os meios por que os governos de Alemanha recobraram a sua independência, tudo tende a mostrar que há na Europa um indomável espírito de liberdade individual, que não admite reconciliar-se com o despotismo, por mais brando que ele seja, por mais que se exorne com o esplendor de vitórias, e por mais que se disfarce com as aparências de formas legais” (junho de 1821).
Comentando esse posicionamento, na obra que lhe dedicou, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1957), Carlos Rizzini indica que embora apoiando as medidas do Congresso de Viena restritivas ao poder ofensivo da França, quando “constituíram-se, na Santa Aliança, em força contrária à evolução das instituições políticas, admitindo o ressurgimento dos jesuítas, perseguindo a imprensa e as sociedades secretas e obstando o advento de regimes constitucionais, verberou o Correio o obscurantismo daqueles déspotas e o engano de terem destruído em Waterloo as conquistas espirituais do século”.
O Correio Braziliense acompanhou detidamente a luta pela Independência da América Espanhola. Considerava que “a obstinação em que está a Europa de querer considerar aquelas importantes e poderosas regiões como pequenas colônias em sua infância é um erro que a experiência dos Estados Unidos da América devia ter ensinado a retificar. Mas tal é a força dos prejuízos e da educação, que a mesma experiência mal pode remediar os seus efeitos”. Entendia não ter a situação nada de similar com o caso brasileiro. A ocupação da Espanha pela França deixara-a sem governo. Não cabia reconstituí-lo sem a participação da América Espanhola nem muito menos deixar passar a oportunidade para introduzir o regime constitucional.
O Brasil encontrava-se em situação diversa desde que passara a abrigar a Corte. A separação não convinha a nenhuma das partes. Neste sentido, o Correio apresentou um programa minucioso, que compreendia desde a criação de uma Universidade e o aprimoramento do sistema escolar até o estabelecimento da mais ampla liberdade de imprensa. A reforma por ele proposta compreendia a organização de um Judiciário independente e o abandono da prática odiosa de delegar a justiça ao arbítrio policial. Em matéria de organização econômica, propugnava a abolição da escravatura, melhoramentos técnicos na agricultura e fomento de manufaturas.
No tocante ao ordenamento político, parecia-lhe que a história de Portugal oferecia a experiência na qual se devia inspirar, restaurando-a. Tinha presente que a força das instituições inglesas provinha do seu tradicional enraizamento popular. Explica-se: “Um governo popular é, na minha opinião, o mais bem calculado para sacar a público os talentos, que há na Nação, e para desenvolver o entusiasmo, que resulta de se considerarem todos os cidadãos em via de ter parte ou voto na administração dos negócios públicos. Mas, quando assim falo, entendo o chamamento de Cortes e outras instituições que formavam a parte democrática da excelente Constituição antiga de Portugal. Não quero, pois, entender, de forma alguma, por governo popular a entrega da autoridade suprema nas mãos da população ignorante, porque isto é que constitui verdadeiramente a anarquia; e nesta se deve cair necessariamente todas as vezes em que o vigor e o entusiasmo do povo excedem a energia e o talento dos que governam” (II. 175. fev. 1809).
Tudo fez para que os leitores tivessem presente o que chamou de “legitimidade da monarquia portuguesa”, porquanto Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade, foi eleito pelas Cortes de Lamego. Desse ponto de vista, apresenta superioridade em relação à monarquia inglesa. No curso de sua evolução, esta última superou a portuguesa ao deixar de ser “monarquia hereditária absoluta”, como em Portugal, para tornar-se mista, “porque o poder Legislativo reside no Parlamento, compreendendo-se por tal o Rei, a Casa dos Lordes e os Comuns”. Escreve: “As Cortes são uma instituição nacional, e a população do Brasil é tão considerável que com toda a justiça pode requerer o entrar com seus procuradores nessa respeitável Junta. (…) O não serem os povos do Brasil representados em Cortes é a primeira origem dos seus males presentes e será causa de muitos outros para o futuro” (nov. 1809).
Hipólito da Costa apoiou a Revolução do Porto na esperança de que poderia significar o reinício do funcionamento de instituições, notadamente as Cortes, para que eliminasse de vez a necessidade de futuras revoluções. Tinha presente os males trazidos pela Revolução Francesa ao insistir que as reformas devem ser feitas pelos governos e não pelos povos. Entretanto, à medida que os líderes daquela Revolução empreendem o caminho de restaurar a situação anterior em que se encontrava o Brasil, passa a prestigiar o movimento pela Independência. Repete que, com a desunião, mais perderia Portugal que o Brasil.
A decisão de Hipólito da Costa de suspender a edição do Correio Braziliense resulta da convicção de que, ao ser instaurada a liberdade de imprensa no Brasil independente, estava cumprida a sua principal missão. Seu último conselho dirige-se à Assembleia Constituinte: seguir o bom senso na elaboração da Carta Constitucional, evitar o impulso de em tudo imiscuir-se, ter presente que as reformas de grande magnitude não se fazem num dia, confiar em que as Constituições se aperfeiçoam ao longo do tempo.
Como em Portugal, o aprendizado da liberdade tornou-se penoso. Viveríamos praticamente duas décadas de lutas fratricidas. Mas a semente plantada por Hipólito da Costa iria frutificar, sobretudo naquelas personalidades que soube preparar para a compreensão do significado da mensagem de Silvestre Pinheiro Ferreira e do liberalismo doutrinário.