Antonio Paim, historiador e colaborador do Espaço Democrático
O general Ernesto Geisel chefiou o quarto governo militar, exercendo a Presidência da República de 1974 a 1979. Empossado, logo nos primeiros pronunciamentos comprometeu-se com a abertura política e indicou a forma pela qual a conduziria.
Assumia o compromisso com “distensão lenta, gradual e segura”. Muitos a consideraram demasiado lenta na medida em que indicou outro militar para sucedê-lo (João Figueiredo, que governaria de março de 1979 a março de 1985). Mas este já se achava desprovido da prerrogativa de recorrer a atos de exceção, em especial a cassação de mandatos e a privação da possibilidade de recurso ao Judiciário pelas vítimas do arbítrio, restaurado que fora o “habeas-corpus”. Além disto, nesse último governo militar foram reintroduzidas as eleições diretas para governador e extinto o bipartidarismo.
Ernesto Geisel encontrou dificuldades de monta notadamente no propósito de esmagar a chamada linha dura, isto é, os militares em postos de comando que se opunham abertamente ao projeto e, ostensivamente, davam continuidade à repressão instaurada sob o governo anterior (general Emílio Garrastazu Médici). Enfrentou corajosamente as manifestações de desrespeito às suas ordens e afastou os seus partidários dos postos-chaves de comando. Por outro lado, atuou contraditoriamente no caminho da distensão.
Ernesto Geisel pertence a uma primeira geração brasileira de ascendência alemã. Seu pai veio para o Brasil em 1890, fixando residência no Rio Grande do Sul, onde constituiu família na própria colônia germânica. Dois de seus filhos (Ernesto e Orlando) seguiram a carreira militar, tendo ambos chegado ao generalato.
Como general, Orlando Geisel ocuparia posições destacadas na tropa, entre elas o Comando do III Exército e, sob os governos militares, o Ministério da Guerra (de 1969 a 1974). Com a posse do irmão, passou à reserva”.
Com a ascensão dos militares ao poder, Ernesto Geisel adquiriria crescente ascendência nos meios políticos na medida em que despontava como a personalidade capaz de retomar os ideais democráticos que estiveram na base do movimento de março de 1964. A par disto, o caminho seguido desde fins de 1968, quando o Exército apareceu cada vez mais como o responsável pela repressão brutal a qualquer forma de oposição – justificando a acusação de que vivíamos sob ditadura militar –, setores cada vez mais amplos do oficialato deram-se conta dos riscos que ameaçavam a sobrevivência da instituição. A oposição da cúpula do Exército à distensão perseguida por Geisel expunha à Nação a profundidade da divisão que grassava em seu meio, o que talvez tenha contribuído para inclinar, nos quartéis, a balança em favor do novo mandatário. O grande teste seriam as eleições parlamentares a serem realizadas em novembro. Os candidatos passaram a dispor de liberdade de propaganda desconhecida desde o Ato Institucional nº 5, de fins de 1968. Além disto, pela primeira vez a televisão era parte do processo. Esse quadro beneficiou claramente o partido de oposição – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) –, que ampliou a base de que dispunha tanto no Senado como na Câmara. No Senado, a bancada oposicionista passou de sete para vinte cadeiras. Na Câmara, a diferença entre o partido oficial, a ARENA, e o MDB, que era superior a cem, reduziu-se a trinta (199 deputados arenistas contra 165 emedebistas). No pronunciamento oficial de fim de ano, Geisel fez questão de deixar claro que não guardava ressentimentos pelos resultados eleitorais. No início de 1975, suspendeu a censura prévia a que vinha sendo submetido o jornal O Estado de S. Paulo.
A linha dura iria valer-se da situação para tentar convencer a opinião de que voltava á tona a ameaça comunista. Os órgãos de repressão, comandados diretamente pelo Exército, desencadearam sucessivos golpes contra órgãos apresentados ruidosamente como pertencentes ao PCB. A repressão atingiu também as redações de jornais. Produziram-se centenas de prisões. A 26 de outubro daquele ano (1975) o Comandante do II Exército, sediado em São Paulo, distribuiu nota à imprensa afirmando ter cometido suicídio numa das dependências do Exército, em que se achava preso, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura. As dependências em apreço eram ocupadas por órgão da repressão que se tornaria famoso, o DOI-CODI, que coordenava a repressão efetivada pelos diversos aparelhos da polícia política. Tornou-se patente que fora vítima de tortura. O fato deu motivo à realização de missa em São Paulo a que compareceram milhares de pessoas, tornando-se uma primeira manifestação política de envergadura contra o governo, depois dos acontecimentos de 1968.
No início de 1976 o fato se repetiu, vitimando desta vez a um operário. Geisel desencadeou pessoalmente uma ação fulminante contra a linha dura, que dava mostras de ter em suas mãos o II Exército, tornando público o grau de divisão que grassava nessa Arma. Deslocou-se para São Paulo e começou por demitir o Comandante da unidade, substituindo a grande maioria dos que detinham diretamente o comando da tropa. Apesar dessa demonstração de força, iria dar-se conta de que a batalha seria muito árdua, vendo-se forçado a fazer diversas concessões a essa facção do Exército, sempre que possível dando demonstrações de sua disposição de persistir na distensão.
Entre as concessões aos órgãos de segurança podem ser mencionadas a virtual supressão da propaganda eleitoral na televisão nas eleições municipais realizadas em novembro de 1976, bem como a cassação de três deputados federais, acusados de pertencerem ao PCB. Contudo, em maio daquele ano, tendo falecido no Uruguai o ex-presidente João Goulart, autorizou o traslado do corpo para o Brasil e os órgãos da repressão foram impedidos de interferir no enterro, que aconteceu na cidade gaúcha de São Borja, na presença de mais de trinta mil pessoas. Em agosto, em face da morte de Juscelino Kubitschek num acidente automobilístico, fato que desencadearia forte emoção no país, Geisel decretou luto oficial por três dias.
O enfrentamento decisivo de Geisel com a linha dura teve lugar em 1977, quando começaram as articulações para a sua substituição. Davam-se com tanta antecedência devido ao fato de que em novembro de 1978 teriam lugar eleições para a renovação do Parlamento e das assembleias estaduais (a indicação do presidente dava-se de forma indireta num colégio eleitoral onde a decisão cabia à representação parlamentar, tanto federal como estadual). O ministro da Guerra, general Sílvio Frota, era ostensivamente candidato e dava sucessivas demonstrações de independência em relação ao presidente. Geisel dispôs-se a correr o risco de demiti-lo, manobrando no sentido de impedir que tivesse lugar reunião do Alto Comando. Tal se deu em outubro daquele ano. O general Frota foi afastado e os seus partidários, no Alto Comando, viram-se privados da possibilidade de qualquer manifestação. Em dezembro, deu a conhecer o nome que indicaria para substituí-lo, general João Figueiredo. Para assegurar essa indicação, afastou das funções que exerciam, notadamente junto à presidência, todos os generais que discordavam da escolha; obteve a sua promoção a general de quatro estrelas, “furando a fila”, como se diz. E, com vistas a tranquilizar a Nação quanto ao seu firme compromisso com a distensão, promoveu reforma constitucional, revogando o AI-5.
Apesar das dificuldades encontradas no plano econômico, Geisel praticamente coroou a Revolução Industrial. Em seu governo, a potência instalada de energia elétrica cresceu 65%; as reservas conhecidas de petróleo aumentaram 44%, e a capacidade nacional de refino, 73%.
Ao afastar-se da presidência, tendo completado 70 anos, Ernesto Geisel assumiu a presidência de empresa privada do setor petroquímico. Deste modo, permaneceu ativo durante muitos anos. No processo de abertura de 1985, ajudou a vencer as resistências no Exército à candidatura de Tancredo Neves, em substituição ao general João Figueiredo. O acordo compreendia a entrega do poder a um civil, mas não se previa que fosse oriundo da oposição. Assim, o pronunciamento de Geisel contribuiu para desanuviar o ambiente. Faleceu em 1996, aos 88 anos de idade.