Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
O número de suicídios no Brasil cresceu de 9.448 para 14.084 casos, aumento de 49% entre 2010 e 2021. As variações mais expressivas ocorreram entre os mais jovens e é possível que a disseminação das redes sociais e dos celulares tenha alguma relação com o fenômeno, também observado em outros países, onde o uso excessivo dos celulares e redes parece afetar dimensões como autoestima, ansiedade e acirrar sintomas de depressão entre os jovens (Sedgwick, 2019).
Além do crescimento, as estatísticas revelam também uma mudança nos meios utilizados. Por diversas razões – facilidade de acesso, cultura, controle de meios alternativos, imitação – o enforcamento, que já era o meio mais utilizado para o suicídio no Brasil, passou de 60,1% para 73,2% do “meio utilizado”, enquanto outros meios, como as armas de fogo, permaneceram relativamente estáveis no período, em números absolutos. O resultado disso é que a porcentagem de suicídios cometidos com armas de fogo reduziu-se de 10,3% para 6,8% em 2021, pois os números absolutos de suicídios PAF mantiveram-se ao redor dos 1.000 casos anuais, enquanto os suicídios em geral aumentaram.
Para além do gravíssimo problema do suicídio em crescimento, em especial juvenil e indígena, esta mudança no perfil dos suicídios provoca um efeito colateral menor, mas importante do ponto de vista metodológico para os estudos sobre os impactos das armas de fogo: tradicionalmente, se aceita que a porcentagem de suicídios cometidos com armas de fogo é um indicador razoável da quantidade de armas em circulação num determinado período e local, na ausência de medida diretas do fenômeno.
Mas o que observamos no Brasil, atualmente, é que, não obstante a explosão do registro de novas armas nas categorias CACs, a porcentagem de suicídios cometidos com armas de fogo está em queda e os números absolutos de suicídios com armas estão estáveis. Quer isso se deva à mudança no perfil dos suicídios, a mudança no perfil dos proprietários de armas ou a erros de coleta da informação – especialmente durante a pandemia – o fato é que o indicador parece estar deixando aos poucos de captar a quantidade de armas em circulação na sociedade brasileira. Uma consequência indesejada é que temos maior dificuldade em correlacionar armas com outros fenômenos sociais como suicídios, acidentes e homicídios e de avaliar o impacto de medidas como a flexibilização das regras sobre armas pós-2018.
Outros indicadores de quantidade de armas
Não há dúvida de que a quantidade de armas novas registradas nas mãos dos CACs explodiu no País nos últimos anos. Mas não sabemos ao certo quantas delas passaram para o mundo do crime ou quantas estão sendo utilizadas para o cometimento dos homicídios, tanto interpessoais quando os relacionados à dinâmica criminal, ou nos suicídios e acidentes PAF.
Outro indicador possível para o número de armas em circulação é a taxa de armas apreendidas pelas polícias estaduais (Kahn, 2022). Embora haja muita variação estadual, em nível nacional a variação das apreensões entre 2013 e 2021 foi de apenas .65%, sugerindo estabilidade durante o período 2013-2021 – mesmo comportamento dos suicídios PAF. Porém, o indicador é problemático, pois ele é “endógeno”: mede não apenas a quantidade de armas em circulação, mas pode refletir também o esforço policial na busca e apreensão de armas. Em outras palavras, quando os números diminuem não podemos dizer ao certo se isto se deve à diminuição de armas em circulação ou à redução da atividade policial (exceto exercendo controle sobra as atividades; por exemplo, construindo um indicador do tipo “armas apreendidas por 1000 buscas policiais”, ou algo do gênero). Uma hipótese é que as polícias tenham perdido interesse na busca e apreensão de armas, num contexto de flexibilização promovido pelo governo federal. Em Estados importantes como SP, SC, PR, RJ, BA, SE, DF e MS temos quedas importantes nas apreensões de armas no período, mas não sabemos se isso reflete menos armas em circulação ou menor atividade policial.
Assim, apesar do aumento na quantidade de novas armas legais registradas nas mãos de civis, principalmente nas mãos dos CACs, é possível que muitas destas armas ainda não tenham migrado para o mercado ilegal, uma vez que a flexibilização é relativamente recente e esta migração é um processo mais demorado. Talvez em razão das licenças caras e treinamentos esta categoria de proprietários de maior renda e instrução, que adquire armas por motivos ideológicos e não apenas para auto-proteção, seja mais cautelosa com a guarda e porte de suas armas e a maioria delas permaneça nas residências, mas não em circulação pelas ruas. O porte, convém lembrar, legalmente é liberado apenas no trajeto entre a residência e o clube de tiro, embora saibamos que esta regra seja uma farsa para liberar de fato o porte.
Pelas razões elencadas, não é certo que os indicadores tradicionais de armas em circulação estejam captando de forma precisa o estoque das armas no País nos últimos anos, seja por a) mudanças no perfil dos suicídios, b) por erros de coleta e preenchimento no SIM do Datasus; c) eventuais variações no volume da atividade policial de busca e apreensão ou d) mudança no perfil dos novos usuários de armas de fogo.
Registro de armas no Sigma
Um indicador alternativo para monitorar a expansão recente do número de armas no País é o registro de novas armas no sistema Sigma do Exército, que registra as armas em mãos dos CACs e está disponível por Estado e ano desde 2003. Os registros mostram que as novas armas foram de cerca de 6 mil, em 2003, para quase 280 mil, em 2021, e que os CACs somam hoje, considerando os registros ativos, 670 mil proprietários entre os cerca de 1,1 milhão de civis com armas legalizadas (Lageani e Polatti, 2022). Mas pela magnitude (0,3% da população), é fácil perceber que os números não representam o estoque de armas existente – estimado em 3.372 milhões de exemplares (1,6% da população), considerando apenas o arsenal legalizado em 17,5 milhões, incluindo as armas ilegais (Small Arms Survey, 2022). O Sigma, em resumo, retrata somente a tendência de crescimento dos novos registros de CACs, mas não dá a dimensão do estoque.
Este incremento parece não ter se refletido necessariamente nem no número absoluto de suicídios cometidos por arma de fogo nem no número de armas apreendidas pelas polícias estaduais. A questão é: dada a escala absoluta de registros, deveríamos esperar um impacto significativo?
Os dados sobre o número total de armas no Brasil são imprecisos e a estimativa mais recente e confiável é de 17.5 milhão de armas, somando as legais e ilegais. Isto que dizer que embora o gráfico do Sigma seja impressionante quando vemos a velocidade de crescimento, do ponto de vista absoluto os CACs representam apenas 0,3% da população e as armas em seu poder apenas 3,8% do total de armas.
Quando levamos em consideração a magnitude absoluta, não é de estranhar que o crescimento dos CACs não tenha se refletido (ainda) no aumento dos suicídios PAF ou das apreensões pelas polícias. A taxa de suicídios por armas de fogo no Brasil é de 0,46:100 mil (Atlas da Violência, 2019). Portanto, numa população CAC de 670 mil pessoas, isto representa um incremento de apenas três suicídios por ano ou cinco casos adicionais de suicídios PAF se considerarmos todos os civis. Um número baixo para fazer diferença.
As polícias estaduais apreendem cerca de 115 mil armas ilegais por ano, o que representa 0,7% do total de armas estimadas no País. Isso é equivalente a uma taxa de 658 apreensões por 100 mil armas. Novamente, numa população de 670 mil CACs, supondo, numa hipótese absurda, que todas as armas passassem para o mercado ilegal, isto implicaria numa apreensão de 4.400 armas adicionais por ano. Mas quantas destas efetivamente já passaram para o mercado ilegal? Se supusermos, de forma pessimista, que 10% delas tornaram-se ilegais nestes anos (perda, furto, venda etc), a estimativa cai para 440 armas adicionais apreendidas por ano. Novamente, muito pouco para afetar a estatística das apreensões policiais.
São apenas exercícios numéricos imprecisos, mas que sugerem que, tanto no caso dos suicídios cometidos por arma de fogo como do indicador de armas apreendidas pelas polícias, é provavel que o impacto do crescimento dos CACs nestes anos tenha sido, por enquanto, diminuto. O que importa é o estoque total de armas. É possível mesmo que ele esteja decrescendo, desde 2003. Mas nossos indicadores são frágeis e talvez estejam deixando de captar o fenômeno.
O aumento do registro de armas pelos CACs depois de 2018 não significou necessariamente um aumento explosivo de armas de fogo em circulação até agora: os indicadores de armas em circulação (% suicídio PAF e apreensões de armas pelas policiais) sugerem que o estoque de armas pode não ter sido impactado, não obstante aumento de registros CAC. A escala do aumento é pequena em comparação ao estoque de armas estimado, em torno de 17,5 milhões.
Como discutido, é possível que estas duas variáveis – % de suicídios PAF e armas apreendidas pelas polícias – não estejam capturando corretamente o fenômeno da expansão das armas, seja pela mudança no perfil dos suicídios, por problemas de qualidade do dado no Datasus durante a pandemia, pela eventual redução na atividade policial de busca e apreensão de armas ou ainda pelas diferenças entre os CACs e os proprietários de armas anteriores. É preciso aprofundar a análise para entender por que a explosão dos registros de novas armas no Sigma não se refletiu nestes indicadores. Uma hipótese é de que o número absoluto de novas armas em circulação é pequeno diante do estoque e apenas uma pequena parcela migrou para o mercado ilegal.
Bibliografia
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