Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
A expressão que intitula este meu artigo se origina, salvo engano, de uma passagem do célebre Manifesto Comunista (1848), de Karl Marx e Friedrich Engels. Contemporaneamente, a frase também virou o título de um livro do filósofo marxista norte-americano Marshall Berman, publicado em 1982.
Mas hoje o meu propósito é bem mais simples. Pego a expressão emprestada somente para comentar um tema recorrente entre os analistas da conjuntura política brasileira nos tempos recentes: a polarização entre lulismo e bolsonarismo.
Essa polarização se manifestou pela primeira vez na eleição presidencial de 2018, na qual Jair Bolsonaro derrotou Fernando Haddad. E ela se repetiria na disputa de 2022, na qual Lula venceu Bolsonaro. Muitos especulam que a polarização ainda voltará em 2026, na hipótese de Lula disputar a reeleição contra um candidato ligado diretamente ao ex-presidente (já que o próprio Bolsonaro está inelegível).
Em 2023, o cientista político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann publicaram um livro interessantíssimo, batizado Biografia do abismo. Segundo os autores, a polarização política em curso teria raízes profundas, pois seria perceptível já na opinião pública, dividida entre lulistas e bolsonaristas. E essa enorme clivagem não se esgotaria no campo político, mas também envolveria valores morais e visões de mundo mais amplas.
Será que o Brasil estaria condenado à repetição perpétua dessa polarização? Penso que tal temor seja exagerado. O bicho não é tão feio como parece. Apresento a seguir duas justificativas, para possível desenvolvimento posterior.
Em primeiro lugar, a manifestação eleitoral desta polarização de fundo entre lulismo e bolsonarismo se restringe ao pleito presidencial. Se olharmos as eleições para os demais cargos, o cenário é muito mais heterogêneo e pluralista. Vejam o exemplo da última disputa para a Câmara dos Deputados, em 2022. Os partidos de Lula e Bolsonaro (PT e PL, respectivamente) elegeram apenas 1/3 do número total de parlamentares. Em outras palavras, 2/3 das cadeiras foram preenchidas por partidos (de esquerda, de centro e de direita) que não estão amarrados a nenhum dos dois polos.
Por fim, mas não menos importante, um pouco de história não faz mal a ninguém. Antes de Bolsonaro despontar no cenário político, predominava no País uma outra polarização política. Me refiro à outrora célebre clivagem entre PT e PSDB, que vigorou entre 1994 e 2014. Ao longo de duas décadas (ou seis eleições presidenciais!), os candidatos destes dois partidos sempre foram os dois mais votados em cada pleito, com duas vitórias do PSDB (FHC) e quatro vitórias do PT (Lula e Dilma). E não é que esta outra polarização acabou morrendo por inanição?
Em resumo, portanto, suspeito que a polarização entre lulismo e bolsonarismo – apesar de ser real, dentro dos limites expostos acima – sequer terá a mesma longevidade da polarização que a precedeu. E encerro fazendo referência a outro importante sociólogo alemão. Há mais de cem anos Max Weber já anotava o que seria o principal limite ao poder dos líderes carismáticos: a sua tremenda dificuldade para produzir herdeiros políticos com as mesmas características.
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