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{ ARTIGO }

Presentes

Um presidente, um ex e dois relógios. O que vai acontecer com eles? Para José Paulo Cavalcanti Filho, no Brasil de hoje tudo é possível

José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

Edição Scriptum

 

1991. O primeiro Secretário da Câmara dos Deputados, Waldir Pires, pediu que redigisse um Código de Ética para a Casa. Estudei todos os similares no Primeiro Mundo. Com regras sobretudo em relação ao dinheiro público. No capítulo dos presentes, defini aquilo que era prática usual nesses países:

1. Como regra, parlamentares não podem receber presentes do público. Nem ver pagos, por terceiros, jantares ou eventos.

2. Exceções:

2.1. Presentes cujo valor não excedam 1/10 do salário básico do parlamentar.

2.2. Presentes de caráter pessoal, mesmo além desse valor, como quadros quando pintados por algum amigo. Mas só quando o autor não tiver interesse em qualquer matéria que esteja sendo votada no Congresso.

O texto nem chegou a ser aprovado. E, creio, talvez apenas por ser avançado demais para a época. Seja como for, ao menos com relação a esses presentes, devemos nos inspirar hoje nessas regrinhas, para casos similares. Por sua dimensão ética. Sobretudo por não haver, ainda, lei sobre a matéria. Com a matéria sendo regulada em portarias, apenas.

Temos, agora, dois presidentes da República na berlinda. Um que foi e voltou a ser, outro que também foi e quer voltar (quase impossível, que nossos tribunais não vão deixar ‒ o que ele parece não perceber). Diferentes, mas parecidos. E os dois receberam presentes.

Segundo o TCU, Lula e Dilma (ignoro a razão, mas o tribunal trata os dois como um conjunto) receberam 9.037 presentes, dos quais 716 foram extraviados. Lula, especialmente, deveria devolver 434 deles, sem que saibamos quais são. Permanecendo todos, hoje, em 11 containers sob a guarda do Instituto Lula, ao custo até esse ano de R$ 1,3 milhão, bancado pela OAS (sem que se perceba por qual razão uma empreiteira, que confessou ter pago propina no Petrolão, assume esses custos). No meio dos presentes, “Obras de arte e joias”, inclusive um relógio PIAGET.

Bolsonaro recebeu 9.158 mimos; todos descritos, na internet, em uma relação detalhada. A maioria sem valor. Como 448 jornais, revistas e livros; 2.600 camisetas, sobretudo de times de futebol ‒ inclusive uma, do Timba, que imagino seja a mais valiosa de todas. Mais 618 bonés, 165 terços, 83 Bíblias, 65 copos, 42 toalhas de banho, um kit de vacina, um ursinho de pelúcia, por aí vai. Quase tudo sem expressão econômica. E mais, segundo a Polícia Federal, 18 itens de “alto valor”. Entre esses um “kit Chopard”, se entendi já devolvido. Aparentemente, falta só um relógio.

Os presentes de valor modesto poderiam, os dois presidentes, fazer deles o que quisessem; mas os tais dois relógios ainda estão nas suas posses, ainda hoje. Cada qual com o seu. E agora?, eis a questão. Devolvam, o que seria melhor; ou permaneçam, caso assim venha de ser determinado pelas autoridades. Mesmo sabendo que, hoje, ditas autoridades são compostas em grande parte por amigos, parceiros, a companheirada, ou nomeados pelo partido no Poder. Com tribunais que nem sempre obedecem às leis. Chegando Bolsonaro, não é piada, a ser processado por “importunar uma baleia”. Seja como for, cumpra-se o due processo of law.

Em um olhar isento, estão os dois condenados a andar juntos. O que chega a ser engraçado. Como se casados fossem. Única solução que não pode se dar, por ofender o mais comesinho bom senso, é um ficar com seu relógio e o outro ser preso por estar com um relógio similar. Em resumo, pois: ou vão os dois juntos para a cadeia, se for considerado apropriação indébita de patrimônio público; ou nada acontecerá, a qualquer deles.

Único problema é que o Brasil anda meio imprevisível. Em fins de 1968 fui à França. Como sabia que os militares não mais me permitiriam estudar no Brasil, pensei ir para a Sorbonne. Cheguei a falar com seu reitor, Jean Roche. Mas ele desaconselhou. Ainda por conta da revolução de maio daquele ano, liderada por Cohn-Bendit, Dany le Rouge. A Universidade iria demorar para voltar a suas rotinas. Melhor ir para outro lugar (acabei em Harvard). E lembro de um muro que então vi em Paris, descendo da igreja do Sacré-Coeur na direção da Place de Terte, que dizia: “Il est trop tard; mais, au moi de Mai, tout est possible” (é tarde demais; porém, no mês de maio, tudo é possível). Pois é. No Brasil de hoje, senhores, tudo é possível. E seja o que Deus quiser.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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