Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Dia 2 de outubro fui ao Blue Note, clube de jazz que traz os ares de Nova York para o Conjunto Nacional na capital paulista, para assistir ao show de Rafael Bittencourt – integrante do Angra, uma das mais conhecidas e longevas bandas de rock do Brasil –, em homenagem a Raul Seixas.
Casa cheia, Bittencourt falou de sua admiração por Raul, da emoção de estar prestando homenagem a seu ídolo, e iniciou cantando músicas conhecidas apenas pelos seguidores mais fanáticos. Num determinado momento, Bittencourt falou que iria cantar uma música que também era pouco conhecida até a pandemia de Covid, quando explodiu. Cantou, então, O dia em que a terra parou, cuja primeira estrofe antecipa o significado da música:
Essa noite
Eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei
Com o dia em que a Terra parou
Com o dia em que a Terra parou
Na sequência, a letra descreve o referido sonho:
Foi assim
No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado, em todo o planeta
Naquele dia ninguém saiu de casa
Ninguém
O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão também não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar
E nas igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia, o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar
Composta na época da ditadura, a música se aplicava perfeitamente ao contexto da pandemia em que a esmagadora maioria das pessoas foi obrigada a permanecer em suas casas em completo confinamento.
Ao final da música, Bittencourt chamou atenção para o caráter extraordinariamente premonitório da letra da referida canção.
Fiquei tão impressionado com o fato que, tão logo foi possível, fui pesquisar o significado da palavra, encontrando as seguintes definições:
Premonitório. Adjetivo. Relativo a premonição; que contém premonição; que adverte com antecipação; que se deve considerar como aviso ou prevenção.
O significado me remeteu imediatamente a muitos outros exemplos, dois dos quais mencionarei a seguir.
O primeiro é o do jurista Ney Prado, secretário-geral da Comissão Afonso Arinos, conhecida como “comissão de notáveis”, criada em 1986 para elaborar um anteprojeto de Constituição. Ele foi premonitório ao advertir para as consequências negativas das vinculações incluídas na Constituição de 1988, deixando isso registrado em dois livros: Os notáveis erros dos notáveis (Editora Forense,1987) e Razões das virtudes e vícios da Constituição de 1988: subsídios à Revisão Constitucional (Editora Inconfidentes, 1994).
Muito criticado na época por ter sido um dos poucos a advertir para o fato de que a comemorada Constituição tinha mais vícios do que virtudes, Ney Prado merece ser reverenciado diante da situação atual da economia brasileira: graças às vinculações (18% da arrecadação federal está gasta obrigatoriamente em educação; 15% da receita tributária dos três níveis de governo está gasta em saúde) e do atrelamento do gasto obrigatório do governo ao salário mínimo, casos do benefícios previdenciários e assistenciais, chegamos a uma situação em que 91% dos gastos federais em 2025 são obrigatórios, restando apenas 9% para gastos discricionários, que incluem todo o investimento do setor público.
O segundo é o do escritor inglês George Orwell, cujos dois livros de maior sucesso são fantásticos exemplos de premonição. Em A revolução dos bichos (Globo, 2003), Orwell consegue antecipar com precisão o que ocorreria no futuro com os países socialistas que prometiam fartura e igualdade generalizada, mas, na prática, produziram um nivelamento caracterizado por baixos padrões de bem-estar, além de uma série de privilégios para os detentores do poder, o que ficou imortalizado na frase “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Em 1984 (Ed. Nacional, 1984), a distopia escrita no final da década de 1940, após o encerramento da Segunda Grande Guerra, Orwell foi profético ao prever as consequências de um mundo dominado por um ditador (Grande Irmão) que exercia pleno controle dos habitantes por conta de uma retórica que permitia ampla manipulação por meio da alteração do significado das palavras e de recursos tecnológicos, entre os quais a teletela, aparelhos instalados em todas as residências, que não apenas transmitiam, mas também captavam imagem e som, de tal forma que todas as pessoas se sentissem espionadas por todo o tempo.
Será que estamos tão longe disso?
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