Pesquisar

tempo de leitura: 4 min salvar no browser

{ ARTIGO }

Premonitórios

Como Raul Seixas enxergou o futuro ao compor “O dia em que a Terra parou”? Foi tão visionário quanto Ney Prado e George Orwell, escreve Luiz Alberto Machado

Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

Dia 2 de outubro fui ao Blue Note, clube de jazz que traz os ares de Nova York para o Conjunto Nacional na capital paulista, para assistir ao show de Rafael Bittencourt – integrante do Angra, uma das mais conhecidas e longevas bandas de rock do Brasil –, em homenagem a Raul Seixas.

Casa cheia, Bittencourt falou de sua admiração por Raul, da emoção de estar prestando homenagem a seu ídolo, e iniciou cantando músicas conhecidas apenas pelos seguidores mais fanáticos. Num determinado momento, Bittencourt falou que iria cantar uma música que também era pouco conhecida até a pandemia de Covid, quando explodiu. Cantou, então, O dia em que a terra parou, cuja primeira estrofe antecipa o significado da música:

Essa noite

Eu tive um sonho de sonhador

Maluco que sou, eu sonhei

Com o dia em que a Terra parou

Com o dia em que a Terra parou

Na sequência, a letra descreve o referido sonho:

Foi assim

No dia em que todas as pessoas do planeta inteiro

Resolveram que ninguém ia sair de casa

Como que se fosse combinado, em todo o planeta

Naquele dia ninguém saiu de casa

Ninguém

O empregado não saiu pro seu trabalho

Pois sabia que o patrão também não tava lá

Dona de casa não saiu pra comprar pão

Pois sabia que o padeiro também não tava lá

E o guarda não saiu para prender

Pois sabia que o ladrão também não tava lá

E o ladrão não saiu para roubar

Pois sabia que não ia ter onde gastar

E nas igrejas nem um sino a badalar

Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá

E os fiéis não saíram pra rezar

Pois sabiam que o padre também não tava lá

E o aluno não saiu para estudar

Pois sabia, o professor também não tava lá

E o professor não saiu pra lecionar

Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar

O comandante não saiu para o quartel

Pois sabia que o soldado também não tava lá

E o soldado não saiu pra ir pra guerra

Pois sabia que o inimigo também não tava lá

E o paciente não saiu pra se tratar

Pois sabia que o doutor também não tava lá

E o doutor não saiu pra medicar

Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

 

Composta na época da ditadura, a música se aplicava perfeitamente ao contexto da pandemia em que a esmagadora maioria das pessoas foi obrigada a permanecer em suas casas em completo confinamento.

Ao final da música, Bittencourt chamou atenção para o caráter extraordinariamente premonitório da letra da referida canção.

Fiquei tão impressionado com o fato que, tão logo foi possível, fui pesquisar o significado da palavra, encontrando as seguintes definições:

Premonitório. Adjetivo. Relativo a premonição; que contém premonição; que adverte com antecipação; que se deve considerar como aviso ou prevenção.

O significado me remeteu imediatamente a muitos outros exemplos, dois dos quais mencionarei a seguir.

O primeiro é o do jurista Ney Prado, secretário-geral da Comissão Afonso Arinos, conhecida como “comissão de notáveis”, criada em 1986 para elaborar um anteprojeto de Constituição. Ele foi premonitório ao advertir para as consequências negativas das vinculações incluídas na Constituição de 1988, deixando isso registrado em dois livros: Os notáveis erros dos notáveis (Editora Forense,1987) e Razões das virtudes e vícios da Constituição de 1988: subsídios à Revisão Constitucional (Editora Inconfidentes, 1994).

Muito criticado na época por ter sido um dos poucos a advertir para o fato de que a comemorada Constituição tinha mais vícios do que virtudes, Ney Prado merece ser reverenciado diante da situação atual da economia brasileira: graças às vinculações (18% da arrecadação federal está gasta obrigatoriamente em educação; 15% da receita tributária dos três níveis de governo está gasta em saúde) e do atrelamento do gasto obrigatório do governo ao salário mínimo, casos do benefícios previdenciários e assistenciais, chegamos a uma situação em que 91% dos gastos federais em 2025 são obrigatórios, restando apenas 9% para gastos discricionários, que incluem todo o investimento do setor público.

O segundo é o do escritor inglês George Orwell, cujos dois livros de maior sucesso são fantásticos exemplos de premonição. Em A revolução dos bichos (Globo, 2003), Orwell consegue antecipar com precisão o que ocorreria no futuro com os países socialistas que prometiam fartura e igualdade generalizada, mas, na prática, produziram um nivelamento caracterizado por baixos padrões de bem-estar, além de uma série de privilégios para os detentores do poder, o que ficou imortalizado na frase “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Em 1984 (Ed. Nacional, 1984), a distopia escrita no final da década de 1940, após o encerramento da Segunda Grande Guerra, Orwell foi profético ao prever as consequências de um mundo dominado por um ditador (Grande Irmão) que exercia pleno controle dos habitantes por conta de uma retórica que permitia ampla manipulação por meio da alteração do significado das palavras e de recursos tecnológicos, entre os quais a teletela, aparelhos instalados em todas as residências, que não apenas transmitiam, mas também captavam imagem e som, de tal forma que todas as pessoas se sentissem espionadas por todo o tempo.

Será que estamos tão longe disso?

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


ˇ

Atenção!

Esta versão de navegador foi descontinuada e por isso não oferece suporte a todas as funcionalidades deste site.

Nós recomendamos a utilização dos navegadores Google Chrome, Mozilla Firefox ou Microsoft Edge.

Agradecemos a sua compreensão!