Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O Brasil vive um fenômeno inaceitável, que deve ser creditado exclusivamente aos desacertos de seus governantes. Trata-se da exacerbação das desigualdades regionais – sacrificando principalmente as populações dos estados das regiões Norte e Nordeste -, apesar de o país registrar aumento da arrecadação tributária.
A análise do período pós-1988, quando foi promulgada a Constituição Federal ainda em vigor, mostra que naquele ano a carga tributária no Brasil correspondia a 22,43% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o Ipeadata, base de dados do governo federal. Em 2023, a carga tributária já chegava a praticamente um terço (32,44%) do PIB. Ou seja, houve aumento da ordem de 45%, correspondente a 10,01 pontos percentuais do PIB. Trata-se de R$ 1,09 trilhão a mais por ano arrecadado pelo governo via cobrança de impostos.
Nesse período de pouco mais de duas décadas, a participação da região Norte no PIB não melhorou em nada. Pelo contrário. Em 2002, era de 8,85% do PIB nacional e, em 2023, foi de apenas 6,18%. Já a participação da região Nordeste no PIB ficou estagnada. De 2002 a 2020, a média regional foi de 13,60% do PIB. Em 2023, ficou em 13,70%.
A pálida participação das duas regiões mais pobres do país na produção das riquezas nacionais é o retrato do desequilíbrio econômico nacional. As regiões Norte e Nordeste, que correspondem juntas a 63,74% da área territorial brasileira e abrigam 35,65% da população nacional, produziram apenas 20% do PIB Brasil nesse período. Por outro lado, o Estado de São Paulo, que ocupa somente 2,97% do território brasileiro e é habitado por 21,62% da população nacional, foi o responsável por produzir, sozinho, mais de 30% do PIB. Uma distorção extraordinária.
Essa realidade impacta diretamente a qualidade de vida dos cidadãos do Norte e Nordeste, que têm a menor renda per capita do país. No Norte, a renda per capita é de R$ 1.302,00. Isso corresponde a 70,45% da renda per capita média do país e a 58,20% da renda per capita média da região Sudeste. No Nordeste, a realidade é ainda pior. A renda per capita média é de R$ 1.146,00, correspondente a 62,01% da média nacional e a 51,23% da média do Sudeste.
A média da renda mensal per capita de Norte e Nordeste é de R$ 1.185,00, ou seja, 64,12% da média nacional e pouco mais da metade (52,97%) da média do Sudeste, que é de R$ 2.237,00.
São números baixíssimos – mesmo os da região Sudeste – para um país que está entre a 8ª e 9ª economias do mundo. A renda média per capita nacional, de R$ 1.848,00 por mês, correspondia a apenas 1,5 salário-mínimo vigente em 2023 (R$ 1.302,00). A renda média das regiões Norte e Nordeste, por sua vez, ficou 9% abaixo do salário-mínimo.
Inevitável, portanto, que as região Norte e Nordeste, com índices 0,683 e 0,659, respectivamente, registrem números desoladores no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador das Nações Unidas (ONU) para avaliação média dos países com base em renda, educação e saúde, no qual quanto mais próxima da nota 1 maior é o desenvolvimento humano de uma nação.
Aliás, o Brasil como um todo vem caindo nesse ranking nas últimas décadas. Em 2002, último ano de Fernando Henrique Cardoso na presidência da República, ocupava a 77ª posição. Em 2023, primeiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil caiu para a 88ª colocação.
Essa situação vexatória a nível internacional e calamitosa a nível interno poderia ser diferente se os governantes cumprissem o que está determinado pela Constituição de 1988, uma vez que a Carta Cidadã dispõe de vários dispositivos voltados à redução das desigualdades regionais e sociais. São os artigos 3º, 5º, 43 (caput e incisos), e o inciso I do art. 151 e parágrafos 6º e 7° do art. 165, que tratam especificamente das renúncias fiscais (gastos tributários), determinando justamente que sua concessão tenha como objetivo o combate a tais desigualdades.
Ignorando o que está na Constituição, os governantes têm utilizado a permissão da concessão de renúncias fiscais, via sistema tributário, de forma equivocada e ilegítima, pois mais de 61% dessas renúncias nas últimas décadas foram destinadas aos beneficiários das regiões Sul e Sudeste, sabidamente as mais desenvolvidas do país.
Em detrimento de Norte e Nordeste, é notória a generosidade dos governos na destinação de renúncia fiscal em favor do Sudeste. Os gastos tributários praticamente triplicaram, passando de 1,50% do PIB em 2002 para 4,80% em 2023, o equivalente a R$ 524 bilhões. Desse montante, R$ 320 milhões foram destinados aos Estados do Sul e Sudeste, ou seja, 61%.
Nesse período, o Brasil foi governado por quatro presidentes, mas todos os ocupantes do Palácio do Planalto nos últimos 22 anos podem ser considerados reprovados no combate às desigualdades regionais e sociais. Lula (10 anos), Dilma Rousseff (5 anos e 7 meses), Michel Temer (2 anos e 5 meses) e Jair Bolsonaro (4 anos) não foram capazes de dar um rumo diferente a essa triste realidade, contribuindo, com isso, para que o país ainda tenha brasileiros de classes diferenciadas em função do lugar de nascimento ou residência, em clara violação ao artigo 5º da Constituição.
Lamentavelmente, isso se repete a nível estadual. O jornal Folha de S. Paulo noticiou, na edição de 24 de outubro de 2024 (pág. A 19) que em 2025 os governos estaduais vão abrir mão de R$ 267 bilhões com a concessão de benefícios fiscais. A reportagem é baseada em um estudo realizado pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco). Segundo o levantamento, o valor é quase o triplo do registrado há 10 anos, corrigido pela inflação. Passou de R$ 89 bilhões para R$ 267 bilhões.
“A entidade afirma que esses incentivos não contribuíram para o desenvolvimento regional. Pelo contrário: aumentaram as desigualdades, beneficiando regiões mais ricas, que possuem mais capacidade de dar isenção e já atrairiam mais investimentos de qualquer maneira. Metade dos benefícios está no Sudeste”, mostrou a matéria jornalística.
Segundo o jornal, para compensar a perda de arrecadação gerada pelas renúncias fiscais, os Estados cobram mais tributos dos demais contribuintes. Outro fator negativo é a redução dos recursos para saúde e educação, calculados sobre percentuais da receita.
Em vez de servirem para reduzir as desigualdades regionais, as renúncias fiscais privilegiam alguns setores e aumentam os déficits nominais, com a consequente elevação das dívidas públicas (da União e dos Estados).
É um preço muito alto e pago pelos que mais precisam.
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