Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O programa de ajuste fiscal do governo, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional, é composto por um elenco de medidas visando o equilíbrio fiscal (déficit primário igual a zero) e à redução dos gastos federais nos próximos seis anos (de 2025 a 2030) em cerca de R$ 300 bilhões, estimativa questionada pelos especialistas. O fato mais concreto é que nos anos de 2025 e 2026, o último biênio do atual governo, a redução de gastos será da ordem de R$ 68 bilhões, portanto, média de R$ 34 bilhões/ano.
Merece destaque o projeto de lei nº 4.614/24, de autoria do líder do governo, deputado José Guimarães, do PT (CE) e irmão do ex-presidente do PT José Genoíno, aprovado pelo Congresso Nacional e enviado para sanção pelo presidente da República, tendo como objetos principais a imposição de restrições do acesso de pessoas ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) e a introdução de limites aos futuros reajustes dos aumentos reais do salário-mínimo nacional.
Até a sanção da lei e sua respectiva publicação no Diário Oficial da União para vigorar a partir de 2025, a correção anual do salário-mínimo era determinada pela variação anual do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), acrescido do aumento real equivalente à taxa de crescimento do Produto Interno Bruno (PIB) brasileiro no segundo ano antes da vigência do novo salário-mínimo.
Admitindo-se a inflação de 2024 igual a 4,88% e considerando que em 2023 o PIB Brasil cresceu à taxa de 3,20%, o novo salário-mínimo para 2025 seria de R$ 1.528,30.
Pela nova lei, o reajuste do salário-mínimo será calculado pela correção anual da variação do IPCA (ano anterior) acrescido do aumento real mínimo de 0,6% até o limite de 2,50%, tudo dependendo de o governo cumprir ou não a meta estabelecida para o crescimento real da receita primária da União.
Cumprida a meta, o aumento real será igual a 70% da variação real da receita primária. Já em caso de descumprimento da meta do arcabouço fiscal, o reajuste real será equivalente a 50% da variação real da receita primária.
Eis a primeira incoerência do ajuste anunciado, pois se o governo continuar a gastança e descumprir as metas, os primeiros a serem penalizados serão os trabalhadores, os aposentados e pensionistas do INSS e os beneficiários do BPC, justamente os menos favorecidos.
Assim, a melhor estimativa para o novo salário-mínimo em 2025, pela nova legislação, é baseada na taxa de crescimento real da receita primária estimada pelo IPEA como 7,60%. No entanto, na hipótese de o governo descumprir a meta do arcabouço fiscal, o percentual do aumento será de 50% dos 7,60%, ou seja de 3,80%, porém face o limitador (teto) imposto pela nova lei, será de apenas 2,50%, portanto inferior aos 3,2% do crescimento do PIB em 2023. Ou seja, em consequência de descumprimento das metas pelo governo e considerando o teto do aumento real imposto pela nova lei o novo mínimo para 2025 será igual a R$ 1.517,92/mês, arredondado para R$ 1.518,00 pelo governo.
Assim, 28,3 milhões de aposentados e pensionistas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) que recebem um salário-mínimo mensal, em razão da mudança de critério imposta pela nova lei perderão em 2025 R$ 10,30/mês para propiciar ao governo federal a redução de gastos da ordem de R$ 3,79 bilhões no ano, considerando-se 13 parcelas de pagamento com o 13º.
A mesma perda de R$ 10,30/mês atingirá os 4,83 milhões de idosos deficientes beneficiários do BPC, pessoas sem nenhuma renda e incapazes de prover seu sustento. Com eles, a economia do governo será de R$ 0,60 bilhão/ano porque não há pagamento de 13º no BPC.
Como se vê, as restrições propiciarão ao governo, em 2025, uma redução dos de gastos da ordem de R$ 4,39 bilhões, ou 11,6% da meta fixada de R$ 34 bilhões/ano.
Já em 2026, pelas mesmas restrições impostas pela nova lei, e com a taxa de crescimento do PIB 2024 igual a 3,5%, e admitindo-se o cumprimento do teto da meta de inflação (4,5% em 2025), a perda de cada aposentado, pensionista e beneficiário do Programa de Prestação Continuada subirá de R$ 10,30 para R$ 27,08/mês. A remuneração que seria de R$ 1.652,97 pela lei anterior, em razão da nova legislação, deverá cair para R$ 1.625,96/mês. Isso representará para o governo, em 2026, redução de gastos de R$ 11,51 bilhões, o correspondente a 33,86% do total da meta de R$ 34 bilhões.
No período acumulado dos próximos dois anos, a economia proporcionada ao governo atingirá R$ 15,9 bilhões, equivalentes a 23,5% da meta total de corte de gastos, às custas dos 33,13 milhões de cidadãos aposentados, pensionistas e beneficiários do BPC, de cujas mesas estará sendo retirado valor suficiente para a compra de 2 quilos de arroz por mês em 2025, e a 2 quilos de arroz e 2 quilos de feijão por mês, em 2026.
Em suma, o programa do governo – que na campanha eleitoral prometeu que os pobres comeriam picanha –, está acabando com o tão tradicional arroz e feijão, prato típico dos brasileiros, em um ato perverso contra os que mais precisam e que em razão da idade ou de alguma deficiência não têm mais condições de prover o próprio sustento e de suas famílias.
O grito dos aposentados e dos idosos já não é tão forte, não reverbera e nem ecoa; logo, o incômodo para o governo é muito reduzido. É muito mais fácil de administrar que o barulho que causaria o corte de supersalários, de penduricalhos, de assessores, gabinetes, ministérios (37), privilégios dos donatários do poder, ou dos beneficiários dos gastos tributários da União (renúncias fiscais via sistema tributário), que hoje atingem quase 5% do PIB, ou seja, cerca de R$ 570 bilhões/ano. O corte em tantas benesses nesses setores representaria, sem dúvida, economia significativa e fariam do Brasil um país menos injusto.
Basta lembrar que, segundo dados oficiais do IPEA, do IBGE e de outros órgãos do governo federal, cerca de 80% da força de trabalho dos Estados de Alagoas, Amazonas, Maranhão e Paraíba têm remuneração mensal equivalente a um salário-mínimo. Situação igual enfrentam de 20 a 30 milhões de brasileiros trabalhadores do setor privado.
Há o argumento de que o setor privado ou mesmo o setor público estadual ou municipal não estão obrigados a acompanhar as restrições do aumento real imposto pela nova lei federal. É verdade, mas o Brasil não tem a tradição de generosidade para com os trabalhadores da base da pirâmide e a maioria esmagadora dos empregadores, públicos e privados, certamente irá acompanhar o estabelecido pela nova lei.
Em uma economia tão expressiva (oitavo lugar no mundo) e tão complexa como a brasileira não é exagero questionar se um dos efeitos danosos da nova lei não será a redução da já baixa massa salarial nacional.
A qualquer pessoa sensata pareceria mais honesto, mais justo e mais compatível com os pronunciamentos do alto escalão do governo federal e dos próprios membros comandantes e componentes das mesas das duas casas do Congresso Nacional, começar os cortes necessários pelos gastos tributários da União e dos supersalários dos modernos donatários do poder.
Hoje a União renuncia, via privilégios concedidos ao setor privado por meio dos gastos tributários, montante correspondente a 5% do PIB, algo em torno de R$ 570 a R$ 590 bilhões/ano. Muitas dessas renúncias, senão a maioria, não são constitucionais, não têm amparo de lei complementar e quase a totalidade é concedida sem prazo fixo. Além de não ter prazo decadencial não tem sequer aferição em relação ao que está gerando de bem para o País que está renunciando ao direito de cobrar valores.
Se o Brasil reduzisse em apenas 3% o total dos gastos tributários não constitucionais, apenas esse montante seria suficiente para evitar o ataque ao bolso do trabalhador e à mesa de suas famílias agora imposto pela nova lei.
Tal medida não seria nenhum absurdo porque falta clareza a essas renúncias, vez que sua concessão não obedece ao princípio fundamental constitucional segundo o qual as renúncias fiscais devem priorizar “a redução das desigualdades regionais e sociais”, algo que não vem ocorrendo há décadas. Assistimos a um flagrante e contínuo descumprimento do artigo 43 e do artigo 151 e parágrafos sexto e sétimo do artigo 165 da Constituição Federal. A comprovação dessa violação é muito fácil, bastando mencionar que 62% a 64% dos beneficiários das renúncias fiscais são empresas do setor privado instaladas nas regiões Sudeste e Sul, sabidamente as mais desenvolvidas e não as mais necessitadas, como são o Norte e o Nordeste. Esse seria o caminho mais correto.
Entramos em 2025 com uma grande dúvida. Implantar um corte de gastos tirando renda (e comida) do cidadão que mais precisa e que tem menos força para protestar é comodismo do governo ou perversidade deliberada?
Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.