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{ CULTURA }

Porque o sucesso do cinema brasileiro beneficia o País

Especialistas no mercado audiovisual acreditam que o sucesso do filme nos cinemas do País e nas premiações internacionais impulsionará a produção cinematográfica nacional

Cena de ‘Ainda estou aqui’: cinema brasileiro desponta em Hollywood

Ricardo Westin

Edição Scriptum com Agência Senado

Fazia tempo que um filme nacional não provocava tanto estardalhaço nem rendia notícias tão boas. Dirigido por Walter Salles, Ainda Estou aqui ganhou no mês passado um Globo de Ouro pela atuação de Fernanda Torres e neste domingo levou o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Ainda estou aqui foi o sexto filme mais popular dos cinemas brasileiros em todo o ano passado. Apesar de lançado apenas em novembro, foi visto por 3 milhões de pessoas. Neste ano, a obra já ocupa a quarta posição, com 1,8 milhão de espectadores.

Especialistas no mercado audiovisual ouvidos pela Agência Senado acreditam que o sucesso do filme nos cinemas do País e nas premiações internacionais impulsionará a produção cinematográfica nacional como um todo.

O professor da Universidade Federal de São Paulo (UFSCar) Arthur Autran, autor do livro Pensamento Industrial Cinematográfico Brasileiro (Hucitec Editora), afirma:

— Uma parte da nossa elite intelectual e da nossa classe média padece de uma insegurança cultural, derivada do complexo de vira-lata, e só se sente segura do valor do Brasil quando o reconhecimento vem de fora, quando há uma espécie de carimbo internacional. Isso acontece com a música, com a literatura, com a pintura e também com o cinema. Em termos simbólicos, portanto, as indicações e premiações de Ainda estou aqui são muito importantes para o cinema brasileiro.

As estatísticas mostram que a indústria cinematográfica brasileira sente mesmo falta de um empurrão. Em 2023, as obras nacionais responderam por quase 40% dos lançamentos nos cinemas do Brasil. A porcentagem não foi ruim. Ruim foi o alcance das produções.

Os filmes brasileiros só conseguiram responder por 7,5% das sessões e 3,5% do público. A situação foi ainda pior em termos financeiros. A participação deles na renda total das bilheterias ficou em irrisórios 3%.

Ainda em 2023, só três filmes nacionais apareceram na lista dos 50 mais vistos: Nosso sonho, Minha irmã e eu e Os aventureiros, que ficaram respectivamente no 43º, no 46º e no 49º lugar. Em suma, as produções brasileiras ainda estão bem longe de representar alguma ameaça à hegemonia de Hollywood nos cinemas do País.

Os especialistas apontam quatro grandes razões para os baixos números que os filmes nacionais amargam: o histórico estigma de que eles são ruins, as políticas públicas instáveis para o setor, a falta de verbas para a divulgação em massa e a concorrência predatória dos filmes norte-americanos.

O diretor e produtor Leonardo Edde, presidente da RioFilme, explica que a fama negativa do filme brasileiro surgiu entre a década de 1970 e a de 1980 porque nessa época, além de as técnicas cinematográficas do Brasil serem, de fato, muito inferiores às de Hollywood, os filmes nacionais ficavam relegados a cinemas de segunda categoria, sem conforto e com equipamentos de projeção ultrapassados.

Segundo ele, a realidade atual é diferente:

— A capacidade técnica de criação e realização do Brasil já é totalmente equiparável à dos Estados Unidos. O auto da compadecida 2, por exemplo, foi feito com a mesma tecnologia [de efeitos visuais] da série americana The mandalorian.

Edde também cita a força do complexo de vira-lata, que faz uma parte dos brasileiros considerar a cultura nacional inferior à estrangeira:

— No caso do cinema, essa visão negativa não faz sentido há bastante tempo. No País, mais de 100 milhões consomem a TV aberta, na qual praticamente todo o conteúdo é brasileiro. Se a produção nacional fosse mesmo de má qualidade, a TV aberta não faria tanto sucesso, não teria todo esse público.

Fernanda Montenegro em ‘Central do Brasil’

A produtora Andrea Barata Ribeiro, que é sócia da O2 Filmes e produziu obras como Cidade de Deus, Xingu, Marighella e Ensaio sobre a cegueira, lembra que o Brasil tem hoje muitos filmes bem-feitos tratando de temas relevantes e realizados por diretores de renome internacional.

— A chegada de Ainda estou aqui e Fernanda Torres à reta final do Oscar prova que é antiga e ultrapassada essa visão de que o cinema nacional é ruim — acrescenta ela, que também é jurada do Oscar.

De acordo com os especialistas, uma forma de combater o arraigado estigma é investir na formação de público, isto é, apresentar o cinema brasileiro a crianças e adolescentes e organizar rodas de conversa após as sessões.

Com esse objetivo, a Prefeitura de São Paulo tem um programa chamado Circuito SPCine, que mantém 32 salas de projeção em bairros sem cinemas comerciais. As entradas, dependendo do local, podem ser gratuitas ou custar no máximo simbólicos R$ 4. Nesta semana, estão em cartaz os filmes Ainda estou aqui, Chico Bento e a goiabeira maraviósa e Luiz Melodia: no coração do Brasil, entre outros.

Na avaliação do professor Arthur Autran, da UFSCar, a fama de ruim não só afasta os espectadores do filme nacional, mas também produz impactos indesejados nas políticas públicas do setor cinematográfico:

— Como foi concebido pela nossa elite intelectual, o estigma chegou à elite política e econômica. Isso significa que os nossos políticos, que são integrantes da elite política e econômica, muitas vezes não estão devidamente informados sobre a importância do cinema e não se dedicam a criar leis e ações que promovam a produção e a circulação de filmes.

A segunda razão para o fraco desempenho do cinema nacional nas bilheterias está justamente nas ações governamentais para o setor, que são instáveis e intermitentes. Autran descreve como particularmente crítico o período compreendido entre 2019 e 2022:

— A opção do governo Jair Bolsonaro foi não ter política cultural nenhuma e desidratar os mecanismos de fomento. A ideia era que não contássemos mais com uma diversidade de produtos culturais, mas apenas com aqueles que tivessem viabilidade econômica. Foi um raciocínio tacanho, equivocado e prejudicial aos interesses do País.

A produtora Andrea Barata Ribeiro acrescenta:

— Apesar de ter muitos mecanismos modernos, a nossa política pública não tem solidez. As diretrizes mudam a cada governo. Tivemos quatro anos totalmente parados durante o mandato de Jair Bolsonaro, em que as novas políticas simplesmente excluíram a indústria cinematográfica dos editais, sem pensar nos prejuízos inclusive à formação de mão de obra.

Segundo Leonardo Edde, da RioFilme, a falta de estabilidade nas políticas públicas compromete não apenas as novas produções, mas até mesmo o costume da população de acompanhar o cinema nacional:

— Os filmes acabam vindo em ondas. Em determinado ano, há vários lançamentos. No ano seguinte, praticamente não há nada. Como a cultura é uma indústria de hábitos, a escassez de filmes nacionais faz o público perder o costume de vê-los. Mais tarde, quando as produções voltam, é difícil recuperar aquele público, já que ele perdeu o hábito. A reconstrução dos hábitos é difícil e demorada na cultura.

Cena de ‘Cidade de Deus’

No Brasil, o poder público incentiva a produção cinematográfica por meio de investimentos diretos, renúncia fiscal e empréstimos subsidiados.

Atuam na esfera federal a Secretaria do Audiovisual, ligada ao Ministério da Cultura, e a Agência Nacional do Cinema (Ancine), dedicada tanto ao fomento quanto à regulação e à fiscalização do audiovisual.

O setor se apoia na Lei do Audiovisual (Lei 8.685), de 1993, na Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), tributo instituído em 2001, no Fundo Setorial do Audiovisual, ramo do Fundo Nacional da Cultura criado em 2006, e na Lei da Cota de Tela (Lei 14.814), de 2024.

Além disso, existem os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A célebre Lei Rouanet (Lei 8.313), de 1991, não financia filmes longa-metragem. No audiovisual, os mecanismos de incentivo da lei favorecem apenas os documentários e os filmes de curta e média-metragem (com menos de 70 minutos de duração).

Iniciativas locais também ajudam a dar musculatura à produção cinematográfica nacional. Os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, por exemplo, criaram o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), que apoia diferentes setores produtivos, entre os quais o cinema.

Na cidade do Rio de Janeiro, a prefeitura mantém a RioFilme, empresa pública que financiou a produção e a distribuição de obras como Eduardo e Mônica, Mussum, Minha irmã e eu e O auto da compadecida 2.

Fachada da Agência Nacional do Cinema, no Rio de Janeiro

Os especialistas ouvidos pela Agência Senado entendem que o poder público precisa, sim, investir no cinema. Eles afirmam que não se trata de um setor privilegiado ou indevidamente protegido, pois recebe incentivos do Estado da mesma forma que outros setores econômicos são beneficiados pela ação estatal, como o agronegócio e a indústria.

A história confirma que, sem incentivo público, não há produção cinematográfica. Em 1990, o então presidente Fernando Collor extinguiu a estatal Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), sem criar imediatamente nenhum outro mecanismo de fomento em seu lugar. Como resultado, foram lançados meros três filmes brasileiros em 1993. Em 1985, em comparação, o cinema nacional havia lançado 108 produções.

O cineasta Silvio Tendler, que foi presidente da Associação Brasileira de Cineastas e dirigiu documentários como Jango, Os anos JK e O mundo mágico dos Trapalhões, diz:

— Não se trata de uma jabuticaba. O incentivo público ao cinema não é uma ação exclusiva do Brasil. Pelo contrário, trata-se de uma medida que todas as grandes nações tomam. Nos Estados Unidos, existe uma relação íntima entre o Estado e Hollywood. A França adota inúmeras medidas para proteger o seu cinema. É por iniciativa do governo que a Coreia do Sul vem despontando como grande produtora de audiovisual. E essa proteção não ocorre à toa. Além de preservar a cultura local, é um instrumento decisivo de soft power na arena internacional.

Set de filmagem de “Doutor Monstro”, filme dirigido por Marcos Jorge e lançado em 2023

O secretário-executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, avalia:

— A crítica aos incentivos públicos ao audiovisual parte do oportunismo político daqueles que não querem que o País usufrua da diversidade de histórias, visões, pensamentos e interpretações que a cultura proporciona.

Ele diz que até mesmo os filmes nacionais que não são auxiliados pelos incentivos públicos — como Ainda estou aqui, que contou exclusivamente com recursos próprios — acabam se beneficiando indiretamente das ações governamentais:

— Os incentivos do Estado criam um ambiente mais propício para as produções audiovisuais, com mais profissionais capacitados e mais estúdios à disposição, por exemplo. Não fossem as políticas públicas que vêm sendo desenvolvidas ao longo dos últimos 20 anos, o Brasil não teria hoje este audiovisual de qualidade internacional.

De acordo com Tavares, uma medida que o poder público precisa tomar com urgência é a regulamentação dos serviços de streaming, como Netflix e YouTube. Entre as regras a serem instituídas está a cobrança da Condecine. Esse tributo é recolhido das TVs aberta e por assinatura e das salas de cinema, entre outras empresas, e posteriormente aplicado em produtos audiovisuais. O streaming ainda não paga a Condecine.

— O Brasil está entre os três maiores mercados de streaming do planeta, mas as plataformas geram poucos empregos no País e fazem investimentos locais irrisórios, levando um volume significativo de recursos nacionais para fora. Elas, inclusive, se beneficiam das verbas da Condecine quando fazem produções nacionais. É preciso corrigir essa assimetria. As plataformas de streaming também devem pagar a Condecine — continua o secretário-executivo do Ministério da Cultura.

A regulamentação dos serviços de streaming, incluindo o recolhimento do tributo, está prevista no Projeto de Lei (PL) 2.331/2022, do senador Nelsinho Trad (PSD-MS). A proposta foi aprovada pelo Senado no ano passado e agora está em discussão na Câmara dos Deputados.

— É passada a hora de determinar que essas empresas invistam parte da receita auferida no Brasil na produção de conteúdo nacional — diz o senador. — Embora as plataformas evitem divulgar seu número de assinantes, é possível afirmar que a sua base de usuários já ultrapassou em muito aqueles que contratam os convencionais serviços de TV por assinatura. Ou seja, o mercado brasileiro de streaming de vídeo está mais que consolidado.

A regulamentação do streaming foi tema de um debate realizado na semana passada no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (CCS). Todos os participantes concordaram com a necessidade da medida.

Senador Nelsinho Trad, autor de projeto que obriga plataformas de streaming a pagar tributo destinado ao audiovisual nacional

A terceira razão apontada pelos especialistas para as dificuldades do cinema nacional nas bilheterias é a falta de grandes investimentos em publicidade. Os filmes de Hollywood, ao contrário, contam com fortunas para a promoção no mercado brasileiro.

— O marketing é importante porque torna os filmes famosos e gera na população o desejo de vê-los. Os filmes norte-americanos levam vantagem nesse quesito porque já chegam ao Brasil dispondo do dinheiro oriundo do lucro obtido no mercado internacional — diz Márcio Tavares, do Ministério da Cultura.

A quarta razão, por fim, também envolve a briga entre o poderio econômico de Hollywood e a debilidade financeira do cinema do Brasil. As produções dos Estados Unidos conseguem monopolizar as vias de distribuição dos filmes.

— Como é que uma distribuidora brasileira consegue disputar espaço nos cinemas com potências como Disney, Paramount, Universal e Sony? — questiona Leonardo Edde, da RioFilme. — Na prática, não existe livre concorrência.

É para atenuar essa concorrência predatória e proteger o cinema nacional que existe a Lei da Cota de Tela, que determina que as salas de projeção exibam uma porcentagem mínima de filmes brasileiros.

Originalmente, a cota de tela estava prevista numa lei de 2001, com vigência até 2021. Quando ela expirou, o governo Jair Bolsonaro não a renovou. Isso ajuda a explicar por que 2021 foi o pior ano dos últimos tempos para os filmes brasileiros em sessões (3,5% do total), público (1,5%) e renda (1,5%).

A cota de tela, que agora valerá até 2033, foi reinstituída no ano passado a partir de um projeto de lei apresentado em 2019 pelo deputado licenciado Marcelo Calero (PSD-RJ), ex-ministro da Cultura.

A proposta do senador Nelsinho que regulamenta o streaming também prevê uma cota para as produções brasileiras nessas plataformas.

Além de garantir o soft power nas relações internacionais e nas trocas culturais, o cinema nacional forte é um importante motor do crescimento nacional, já que estimula direta ou indiretamente quase 70 setores da economia, gera emprego e renda e paga tributos aos cofres públicos — ou seja, o investimento dá retorno financeiro ao Estado.

Para que seja devidamente estimulado, a produtora Andrea Barata Ribeiro diz que o audiovisual deveria estar ligado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e ser promovido com força também no exterior:

— Não é à toa que já nos anos 1930 o então presidente americano disse: “Onde entram os nossos filmes, entram os nossos carros, as nossas roupas…”.

De acordo com ela, o cinema forte também ajuda o País em termos culturais:

— Sem ele, corremos o risco de só assistir a conteúdo advindo de outros países. Foi através do audiovisual que muitos de nós conhecemos Ariano Suassuna, Jorge Amado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e tantos outros. É aí que nos enxergamos, não em Rambo.

Leonardo Edde, da RioFilme, afirma que o cinema nacional também é importante por permitir que o País seja retratado pelo olhar dos próprios brasileiros, e não pelo olhar de estrangeiros. Ele conclui:

— As conquistas de Ainda estou aqui mostram que um filme é capaz de aumentar a autoestima de um país inteiro. Quando isso acontece, as pessoas mudam a relação que mantêm com o País, refletem mais sobre a própria realidade e até têm mais esperança em relação ao futuro. A arte, de alguma maneira, consegue interferir na realidade.


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