Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Previsão de chuva, mas até os vendedores de capas que circundavam o Allianz Parque torciam para não chover, convencidos de que aquela noite merecia estrelas. Gente de todas as idades, credos, taxas de colesterol, galáxias, cicatrizes. Em uma das fileiras da frente, um adolescente dos seus 15 anos, que poderia estar planejando o assassinato de alguma colega em escola da Inglaterra, acompanhado pela avó orgulhosa, dançou com gingado e cantou todas as músicas. Encantou-se, o menino, com a qualidade de sua família, que lhe propiciou a improvável aproximação com algo celestial.
Foi mágico. Tempo rei, o show de Gilberto Gil, é um tributo à transcendência. Gil é o Rei do tempo, aliás, o organiza. Traçou seu caminho pelo mundo, festejou Chacrinha e deu aquele abraço. Falaria com Deus, se pudesse, e subiria aos céus sem cordas pra segurar. Fugiria com cada um de nós para outro lugar, baby. Quando sobe ao palco, a alma cheira a talco, como bumbum de bebê. A marmelada é de banana e a bananada de goiaba. Misture tudo e o bom mesmo é viver em Guadalajara dentro de um figo maduro…
Imagine um pai, sacerdote das rimas e poeta dos ritmos, do alto dos seus mais de 80 anos, fazendo a turnê de uma despedida que nunca acontecerá. Vá além: sonhe-o cantando em um estádio lotado e coberto de saudade antecipada. Extrapole. Ele canta com sua filha, que luta contra câncer, esse covarde. uma obra prima: “Drão, os meninos são todos sãos, os pecados são todo meus, Deus sabe a minha confissão…”. Preta Gil cantou com seu pai a música sobre a separação de seu pai e sua mãe.
Imagine um baiano com orgulho de ser baiano, que veio da Bahia cantar e contar tanta coisa bonita que tem lá, na Bahia. Daqueles que entendem a potência e as contradições da terra que ama. Mestre da exaltação crítica, capaz de conciliar a ideia de “que Deus entendeu de dar a primazia, pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia, primeira missa, primeiro índio abatido também, que Deus deu”…E que também deu toda magia do “primeiro carnaval, primeiro pelourinho também…”
Imagine alguém que dialoga – e brinca – com algo tão poderoso como a fé. Dúvida, mistério, necessidade e esperança. “A fé tá viva e sã, a fé também tá pra morrer, triste na solidão”. Uma fé pura como deve ser, mas insegura e malandra na sua vontade de sobreviver: “certo ou errado até, a fé vai onde quer que eu vá, oh, oh, a pé ou de avião, mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar, oh, oh, pelo sim pelo não…” Mas, no geral, “a fé não costuma faiá”.
Gil é uma espécie de Galileu da música: revoluciona ao mesmo tempo que simplifica. Algum que viajou na viagem do Expresso 2222, festejou a África, fez a Jamaica naturalmente nossa e compreendeu a revolta do punk da periferia, aquele da Freguesia do Ó. Com seu carisma tranquilo que navega sentidos, canta que o tempo é rei. Sabe que “tudo permanecerá do jeito que tem sido”. Mas também que “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Na verdade, sabe tudo!
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