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{ ARTIGO }

A verdade e os números primos

A matemática não é bolsonarista nem petista, não é tucana nem neutra; ela apenas é, escreve o cientista político Rubens Figueiredo

 

Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

 

Nesse momento, no Brasil, a verdade, tal como a entendíamos, é inalcançável, perdeu o valor. Na teoria, existe uma concepção clássica: verdade é aquilo que se adequa à realidade. Simples. Mas o problema está justamente aí: cada grupo passou a construir uma realidade própria, ancorada nos seus pressupostos, suas paixões e seus medos. E, se cada realidade é diferente, a verdade, que deveria ser uma só, se fragmenta em verdades particulares.

Na matemática, não há espaço para delírio. Número primo é definido como um número natural maior que um e que tem exatamente dois divisores positivos: um e ele mesmo. Três, por exemplo, sempre será primo — não importa se você é de esquerda, direita, centro ou se prefere não se posicionar. Trata-se de uma evidência objetiva.

Mas, na sociedade de hoje em dia, está perigoso: até o número primo pode se tornar uma questão de gosto. Cada lado inventaria o seu conjunto de números “primos”, onde os julgados inconvenientes podem deixar de ser primos, e outros, por pura conveniência, passam a ser. O absurdo ganha status de argumento e a coerência fica fora da equação.

A história é a dos vitoriosos. Mas ela também passou a ser escrita e reescrita ao sabor das crenças e conveniências. O passado deixou de ser registro para virar território de disputa, de narrativas. O embate intelectual acabou. Quem discorda não é só alguém que discorda: é inimigo, é mentiroso, é herege, fascista ou comunista. O argumento virou ofensa pessoal.

O livro A vingança de Tocqueville, de Fábio Giambiagi (Rio de Janeiro, Alta/Cult Editora, 2024, 384 páginas), é uma obra que faz algo quase subversivo: trata números como números e fatos como fatos. Não são opiniões, nem interpretações, nem desejos: são dados. E os dados contam uma história que muitos preferem ignorar.

Giambiagi mostra, desfilando capacidade técnica e bom humor, como chegamos ao atual descalabro fiscal, com uma carga tributária alta, dívida pública crescente e um orçamento engessado. É um problema gravíssimo. A sequência histórica ajuda a colocar cada personagem em seu devido lugar.

No governo FHC houve avanço importante no controle da inflação e criação de regras, como a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foi também o período que consolidou o tripé macroeconômico: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Não era perfeito — tirando torresmo com cerveja gelada, nada é –, mas foi um esforço claro de disciplinar as contas.

Veio então Lula, que manteve no primeiro mandato boa parte da política econômica de FHC (embora o petista afirmasse ter recebido uma “herança maldita”) e colheu frutos de um cenário externo favorável, com superávits primários robustos e reduzindo a relação dívida/PIB por alguns anos. Mas já no segundo mandato começaram a surgir sinais de afrouxamento fiscal, ampliados ainda mais sob Dilma.

Com Dilma Rousseff, houve uma virada de fato: renúncias fiscais em larga escala, manobras contábeis (“pedaladas”) e aumento expressivo do gasto público corrente. Resultado: deterioração rápida das contas públicas e disparada da dívida. E, segundo o economista Samuel Pessoa, a maior recessão em dois anos que um país já enfrentou em tempos de paz. Evoluímos do “nunca antes na história desse país” para o “nunca antes na história da humanidade”.

Na página 240 do livro, está o resumo da ópera. Entre 2003 e 2014, o Brasil cresceu 3,7% a.a. enquanto as despesas primárias cresceram 5,4% a.a. Nas palavras de Giambiagi: “o resultado disso foi que o superávit primário consolidado de 3,2% do PIB em 2003 se transformou num déficit de 0,6% do PIB em 2014. O governo conseguiu a proeza de piorar as contas fiscais em quase 4% do PIB com a economia crescendo perto de 4% durante 11 anos!”. Qual a herança maldita?

E que Giambiagi faz, com serenidade quase provocativa, é lembrar que a matemática não é bolsonarista nem petista; não é tucana nem neutra: ela apenas é. Se o País gasta persistentemente mais do que arrecada, a dívida cresce. E crescerá ainda mais se não forem feitas reformas impopulares — porque, como lembrava Tocqueville, as democracias têm dificuldade em conter gastos que agradam ao eleitorado de curto prazo.

Em um ambiente onde até número primo pode virar questão de opinião, A vingança de Tocqueville parece quase um ato de resistência: é a tentativa de recolocar a discussão fiscal no terreno da realidade — esse território cada vez mais esquecido no debate público. Afinal, três é um número primo. Quatro não é.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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