José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
No programa Em Pauta, da Globonews, na sexta da semana passada, o jornalista Guga Chacra deu importante opinião em defesa da Liberdade de Expressão. Trechos de sua fala:
“A administração americana está de olho no ministro Alexandre de Moraes. Ele proíbe cidadãos americanos e residentes permanentes, que são brasileiros e vivem nos Estados Unidos, no caso Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino (tem o Alan dos Santos que eu não sei o estatuto migratório dele especificamente) de se manifestar… Eu acompanho aqui as redes sociais e posso ver opiniões diversas. Na visão dos Estados Unidos, e de muita gente aqui, eles estão sendo calados por um ministro do Supremo Tribunal. Hoje é ele, no outro dia pode ser eu”.
Relevante é que, pela primeira vez, alguém da grande mídia fala sobre esse tema. É algo interdito. No tanto em que seus colegas se prostam, em um silêncio cúmplice, no altar do Poder Supremo. Calados, todos. Curiosamente, domingo passado, o mesmo Guga Chacra não participou de seu programa semanal, o Globonews Internacional. Que aconteceu? Segundo informaram, laconicamente, “estava de férias”. Repentina e fora de época. Estava mesmo?, eis a questão. Ou foi só advertência para os coleguinhas de bancada? Veremos depois. Seja como for, começo o texto com ele.
E já lembro que, para o filósofo da Universidade de Veneza (Itália) Umberto Galimberti (Il Gioco delle Opinioni), “o símbolo do herói moderno deveria ser Ulisses”. Não o brasileiro, Ulisses Guimarães, que conduziu a resistência democrática ao golpe de 1964. Ou o Ulisses de Joyce, que nem se chamava Ulisses e eram dois; com o romance relatando um dia (16.06.1904) nas vidas de Leopold Bloom e Stephen Dedalus, em Dublin (Irlanda).
Galimberti propõe, como esse herói, o Ulisses grego, rei de Ítaca (no mar Jônico). Por sua invenção do Cavalo de Troia. Em cujo ventre teriam se escondidos soldados que, dentro dos muros, à noite abriram as portas da cidade. Quando se acredite no que se diz nas escolas. Porque Ulisses seria portador dos valores básicos que se exigiria de uma sociedade moderna, mentira e astúcia.
Retraduzindo essas palavras, para dar-lhes mínimos de dignidade, astúcia passaria a ser a “capacidade de encontrar o ponto de equilíbrio entre forças contrárias”. Enquanto mentir significaria “habitar a distância que separa aparência da realidade”. E “escapar da ingenuidade dos que acreditam que as coisas são, sempre, o que aparentam ser”. Com Ulisses, inaugura-se a dupla consciência da realidade e sua máscara.
Digo isso porque se vê, no Brasil de hoje, a sagração da censura, sobretudo na mídia eletrônica, como instrumento de coação a quem pretenda exercer a Liberdade da Expressão. Para evitar opiniões contra o governo. Ou sob o pretexto de impedir a propagação de mentiras e astúcias. Em qualquer caso com restrições que resultam inaceitáveis em qualquer país verdadeiramente democrático.
Nos Estados Unidos, por exemplo, lá como (em tese) também aqui (art. 220, § 2o de nossa Constituição), existe vedação a qualquer tipo de censura. A regra está na primeira emenda do Bill of Rigths (Carta dos Direitos, nome coletivo que se dá às 10 primeiras emendas à Constituição Norte-Americana, de 1789), redigida em 1791 por Joseph Madison; depois presidente da República, de 1809 a 1817 e considerado um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos. Nasceu em Conway (EUA) e morreu longe, em Montpellier (França), mas essa é outra história. Diz a emenda: Congress shall make no law… abridging the freedon of speech, or the press…. (O Congresso não fará nenhuma lei… cerceando/restringindo a liberdade de expressão, ou a imprensa…).
Verdade que a Suprema Corte passou a permitir, desde 1919, limites pontuais à livre expressão. Com a doutrina do Clear and Present Danger¸ sagrada no case Schenck x United States. Confirmada, posteriormente, com as doutrinas do Gravity on the Evil (1924) e Free Speech (1945). Princípios esses renovados e alargados em 1982 com a doutrina, hoje dominante no país, das Unprotected Speech, estabelecida no case New York x Ferber.
Mas isso, atenção senhores, ocorre em apenas três situações específicas: pornografia (especialmente infantil), dados do governo (sobretudo aqueles classificados como reservados) e segredos das empresas (como a fórmula da Coca-Cola).
Sem quaisquer implicações com ideologias ou supostas tentativas de golpe, como vem usualmente ocorrendo por aqui. E sem uma única lei nos Estados Unidos, bom lembrar, para prevenir fake news. Sem que se possa dizer que a democracia, por lá, não ande bem.
Fosse pouco, em 1996, o Congresso americano aprovou a Lei de Decência nas Comunicações, em que, na seção 230, as redes sociais restam isentadas sobre conteúdos postados pelos usuários. Os democratas, em contradição aberta com a defesa da Liberdade de Expressão que adotam em seus discursos, queriam o fim da tal seção 230. Sem sucesso, na via legislativa, recorreram à Suprema Corte. Já tinham lá quatro ministros (justices, assim se chamam, para diferenciar dos juízes de carreira conhecidos como judges) indicados pelo próprio Partido Democrata.
Bastaria um voto apenas, entre os cinco ministros indicados pelo Partido Republicano, e tiveram um susto. Quando a Corte, por 9 x 0, decidiu estar a seção 230 conforme a tradição americana da Liberdade de Imprensa. Certo que nos Estados Unidos, tão cedo, haverá qualquer mudança nesse campo.
Complicado é que falsear essa verdade, no sentido de esconder a realidade, é a marca do Brasil de hoje. A da banalização da esperteza. A das certezas construídas sem nenhuma base. A das mentiras usadas para beneficiar partidos políticos. A das astúcias utilitárias.
Ao lado das mídias tradicionais (rádio e TV), é cada vez mais relevante o espaço digital. No mundo inteiro. E ele precisa ser livre. Devemos agora nos perguntar se aqui vai ser tudo controlado. Teremos em vigor, afinal, o Big Brother (o Grande Irmão) previsto por George Orwell (no livro 1984)? Com quem?, controlando a informação. Será desalentador, leitor amigo, se assim vier a ser. E, grave, tudo caminha nessa direção.
Em seu comovente painel sobre a eterna luta entre indivíduo e sociedade, que é servidão humana, escreveu Somerset Maugham: “O poder é a lei, a consciência e a opinião pública”. Deveríamos seguir nessa trilha. Reconhecendo a lição de que homens livres são não apenas aqueles que têm consciências livres. Mas, também, os que sejam capazes de se expressar livremente. De dizer o que quiserem (respondendo por seus eventuais excessos, claro, com base no Código Penal).
Longe da “musa da autocensura”, como a ela se referia George Steiner (no Livro da revolução). E sem a censura oficial, hoje crescentemente exercida pelos tribunais. Como denunciado por Guga Chacra, vimos isso no começo do texto. Essa, leitor amigo, é que é a verdadeira Democracia.
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