Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Em 1993 fui convidado pela direção da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) para integrar uma delegação de 13 professores para participar do maior evento anual de solução criativa de problemas em Buffalo, estado de Nova York, nos Estados Unidos. Tal convite me causou enorme surpresa, pois acreditava não ser uma pessoa criativa e, nesse sentido, fiquei em dúvida se tal investimento feito pela Fundação não seria um desperdício de recursos.
Dessa primeira ida a Buffalo para participar do Creative Problem Solving Institute (CPSI), realizado nas instalações do campus local da New York State University, guardo, além de agradáveis lembranças, um ensinamento básico: não existe pessoa não criativa; todos possuem potencial criativo, cujo desenvolvimento e externalização podem ser maiores ou menores, dependendo de uma série de fatores, entre os quais a personalidade de cada um e seu próprio esforço em se aprofundar.
Minha desconfiança quanto a não ser uma pessoa criativa caiu por terra logo na abertura do evento, na qual Bill Shephard, diretor da Creative Education Foundation, promotora do ÇPSI, afirmou que ao contrário do que muita gente imagina, todos são criativos, ou seja, qualquer pessoa possui um potencial criativo, que, por sua vez, pode ser mais ou menos desenvolvido. Nesse sentido, a criatividade não é um dom com o qual algumas pessoas nascem e outras não. Também não é algo que dependa da personalidade de cada pessoa, embora as dotadas de uma personalidade mais extrovertida tenham mais facilidade de externalizar sua criatividade do que as pessoas mais tímidas ou introvertidas.
Despertado para a importância da criatividade, matriz teórica da solução criativa de problemas, passei a me aprofundar cada vez mais no assunto, tanto que acabei fazendo mestrado em criatividade e inovação na Universidade Fernando Pessoa, em Portugal. Concentrei meus interesses, estudos e pesquisas em duas áreas de aplicação da criatividade: a economia e a educação. De lá para cá, ministrei centenas de cursos e palestras, além de ter participado de inúmeros congressos ou seminários sobre criatividade e economia criativa.
Nessas ocasiões, invariavelmente tive de repetir a explicação de que qualquer pessoa possui potencial criativo, independentemente de sua personalidade. As mais extrovertidas ou comunicativas podem ter mais facilidade para manifestá-lo, o que não significa que as pessoas mais retraídas, tímidas, reservadas ou introvertidas não o possuam. Exemplos do primeiro tipo, muitas vezes mencionados pelos próprios alunos ou participantes desses eventos, normalmente incluíam consagrados nomes do mundo das comunicações ou dos negócios como Silvio Santos, Jô Soares, Washington Olivetto, Bill Gates e Oprah Winfrey. Quando me pediam para citar um exemplo do segundo tipo, ou seja, de uma pessoa tímida, discreta e introvertida que se destacasse pela criatividade, eu não tinha dúvida em apontar o nome de Luis Fernando Verissimo, falecido no dia 30 de agosto aos 88 anos.
Famoso por seu caráter reservado, procurava evitar aparições públicas. Quando aceitava ser entrevistado, o que era raro, exigia enorme habilidade de seu interlocutor, pois costumava responder monossilabicamente às perguntas que lhe eram dirigidas. Apesar desse traço de seu temperamento, jamais se pôs em dúvida sua extraordinária criatividade. Se não a manifestava falando, Verissimo o fazia por meio de seus múltiplos talentos como escritor, jornalista, cartunista, tradutor, dramaturgo e até músico, pois tocava saxofone na banda Jazz 6, autointitulada “o menor sexteto do mundo”, por ter somente cinco integrantes.
Embora não se considerasse humorista, chegando a afirmar que se sentia um intruso, um verdadeiro “impostor” na categoria, é fácil detectar pitadas de humor em quase todas as suas obras.
A esse respeito, vale a pena reproduzir um trecho da matéria do suplemento especial de Cultura & Comportamento dedicada a ele pelo jornal O Estado de S.Paulo em sua edição de 31 de agosto:
“Em 2020, Elias Thomé Saliba, professor da Universidade de São Paulo especializado em humor e autor de “Raízes do Riso” (Companhia das Letras, 2002), descreveu o escritor como o cronista mais popular do Brasil, aquele que ‘diz o que o leitor quer falar, mas não consegue”. “Verissimo ultrapassa o transitório não apenas porque suas crônicas se transformam em livros, mas porque estabeleceu desde o início um pacto humorístico com o leitor”.
Prossegue Saliba:
“Mais do que qualquer outro, o público que se torna parte do pacto humorístico é aquele que percorre o noticiário sério do jornal ou da revista e torna-se capaz de entender as alusões, ironias e paródias de Verissimo e de seu humor fortemente conectado com os eventos noticiados e, por isso, compreensível apenas naquelas situações”.
Gaúcho desnaturado, que nunca vestiu bombacha, não tomava chimarrão e jamais montou um cavalo, era filho do famoso escritor Érico Veríssimo − autor entre outras obras de “Olhai os lírios do campo” (escrito em 1938), a trilogia “O tempo e o vento” (seus três volumes foram escritos em 1949, 1951 e 1961) e “Incidente em Antares” (escrito em 1971) − com quem teve uma relação difícil. Como bem observou o historiador Leandro Karnal, “Érico Veríssimo levou o Rio Grande do Sul ao mundo. Já Luis Fernando trouxe para dentro das famílias reflexões sobre a classe média e o choque de gerações. Suas personagens retratavam de forma brilhante o cotidiano e as relações entre pais e filhos, passado e presente”.
Depois de residir por duas vezes nos Estados Unidos, Luis Fernando Verissimo, começou a trabalhar em 1956 no departamento de arte da Editora Globo, em Porto Alegre. Entre 1962 e 1966, viveu no Rio de Janeiro, onde trabalhou como tradutor e redator publicitário no jornal da Câmara Americana de Comércio, e onde conheceu e casou-se com a carioca Lúcia Helena Massa, sua companheira de vida inteira e mãe de seus três filhos.
Em 1967, de novo em sua cidade natal, começou a trabalhar no jornal Zero Hora, a princípio como revisor de textos (copy desk) e também trabalhou na MPM Propaganda, como redator. Nos anos 1970, também escreveu para o jornal Folha da Manhã e para o Jornal do Brasil, além de atuar como tradutor. Já nos anos 1980, viveu novamente nos Estados Unidos, agora com a esposa e os filhos. Também escreveu para a revista Veja, a partir de 1982. No ano de 1989, passou a escrever para O Estado de S.Paulo. Dez anos depois, Verissimo se tornou colunista do jornal O Globo. Já na TV Globo, foi redator de programas como Planeta dos homens e Viva o gordo.
Além do reconhecimento conseguido em suas passagens por alguns dos mais importantes veículos da imprensa brasileira, Verissimo tornou-se verdadeira celebridade graças aos personagens criados em seus livros e desenhos. Na impossibilidade de mencionar todos, destaco o detetive Ed Mort, o Analista de Bagé e, principalmente, A Velhinha de Taubaté, criada durante o governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985).
Famosa por ser “a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo”, como definido pelo próprio autor, Verissimo contava que, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, sempre se pensava antecipadamente em como a velhinha iria responder.
Em 25 de agosto de 2005, em tempos de crise do “mensalão”, a velhinha teve o seu falecimento anunciado pelo seu criador, na crônica intitulada Velhinha de Taubaté (1915-2005). Ela teria morrido em frente à TV, decepcionada com o quadro político brasileiro, em especial com o seu ídolo, Antonio Palocci.
O falecimento de Verissimo marca o fim do trio de ouro do humorismo literário, composto também por Millôr Fernandes e Ivan Lessa. Como bem lembrou Sergio Augusto também no suplemento especial de Cultura & Comportamento do jornal O Estado de S.Paulo, “não por acaso, Millôr e Ivan figuravam em seu panteão de heróis, ao lado de dois de seus mestres da crônica carioca, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria, e dos escritores Joseph Conrad e Evelyn Waugh“.
Não posso encerrar este artigo sem me referir à outra pessoa por mim citada juntamente com Luis Fernando Verissimo como exemplo de pessoa criativa dotada de enorme versatilidade, porém arredia e avessa aos holofotes: Woody Allen, com cujo humor judaico, intrinsecamente cético e autodepreciativo, muito se identificava.
Sergio Augusto lembra que “Verissimo nunca dirigiu um filme, mas em compensação Allen não sabe desenhar. No resto empatavam. A única diferença é que Allen toca clarinete e Verissimo tocava saxofone”.
Sem querer ser saudosista, mas já o sendo (parafraseando Jô Soares), o falecimento de Verissimo significa um maior distanciamento da época em que a criatividade e o humor derivavam da inteligência, elegância e genialidade das pessoas e não da baixeza e apelação predominantes na atualidade.
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