Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O Rio Grande do Sul vem sendo apontado por especialistas como um bom exemplo de desempenho na queda da criminalidade, desde que o governador Eduardo Leite (PSD), eleito em 2019 e reeleito em 2023, estabeleceu novas políticas públicas na segurança, como por exemplo a “gestão por resultado”.
Periodicamente, o governador preside uma reunião com a Secretaria de Segurança e outros órgãos do sistema de justiça criminal e outros atores que tem relação com o tema, analisa os dados do período, cobra ações dos responsáveis etc. A estratégia parece estar contribuindo para a queda dos homicídios e roubos no Estado, assim como aconteceu anteriormente com outros Estados que adotaram a gestão por resultados (MG Gestão por resultados, PE Pacto pela Vida e SP Infocrim, entre outros). Na literatura de boas práticas de segurança existem fortes evidências de que “gestão por resultados” funciona para reduzir a criminalidade. (Weisburd, 2003; Banco Mundial, 2012; Souza e Cano, 2015; Guedes, 2018)
A dificuldade na avaliação do impacto está em separar o que é uma tendência anterior de queda e o que se deve às novas iniciativas. O que se deve a fatores nacionais e o se deve especificamente ao governo do Rio Grande do SUl. Depois de atingir o auge por volta de 2017 – fruto da recessão econômica do período 2014 a 2016 – a criminalidade arrefeceu na maioria dos Estados. Com efeito, dependendo do indicador e período selecionados, encontramos quedas maiores do que as observadas no RS.
Assim, por exemplo, tomando 2019 como ano de referência, os furtos de veículos caíram 49,4% no RS, mas teve redução ainda mais intensa em GO, AP e AC. Os furtos de veículos caíram em 15 Estados neste mesmo período. Os roubos de veículos caíram 79,5% no RS entre 2019 e 2024, mas caíram 80,9% no AC e 82,6% em GO. A queda média nacional foi de 32,7% e observamos crescimento em apenas três Estados. Com relação aos homicídios dolosos, a queda no RS entre 2019 e 2024 foi de 24,6%, mas em pelo menos nove Estados as quedas foram ainda mais intensas.
Como é possível estabelecer o impacto das medidas adotadas no RS quando as tendências de queda parecem as vezes anteriores a 2019 e parecem afetar diversos Estados, que adotaram outras intervenções ou simplesmente nenhuma nova prática?
É possível avaliar este impacto de forma mais ou menos robusta. Um método pouco robusto, mas sugestivo é procurar “quebras” nas séries históricas de crimes no RS, por exemplo, através do teste de Chow – que exige que o pesquisador sugira a data da quebra – ou do teste de CUSUM – que testa sozinho se e onde estão as possíveis quebras. Ambos estão baseados no princípio de que em períodos atípicos os parâmetros das equações de regressão que descrevem a série tornam-se instáveis e é possível identificar esta instabilidade comparando períodos anteriores e posteriores às quebras.
Um primeiro passo seria submeter as séries criminais do RS aos dois testes para ver como se saem. Existem quebras discerníveis? Elas ocorrem próximas de 2019?
A tabela traz o valor de F para os demais crimes no RS e também para dois outros Estados, SC e o DF.
O teste confirma quebras nas séries em 2019 no RS e que as diferenças antes-depois foram grandes. O valor de F é em geral maior do que nos Estados usados como comparação. Mas temos aqui dois problemas: como a tendência das séries é de queda acentuada, o teste também identifica quebras significativas em outros momentos, como 2018, 2020 – ano do Covid – ou 2022. E também encontramos quedas em outros Estados no mesmo momento, 2019, como por exemplo, na vizinha Santa Catarina ou no Distrito Federal. Embora o teste Chow sugira que houve um efeito, não há como garantir que ele se deva especificamente às novas medidas implementadas no Estado.
Tanto Chow quanto CUSUM sugerem que as trajetórias descendentes se consolidaram no RS em momento anterior e as quebras observadas em 2019 podem ser uma continuação ou aceleração dessas tendências, mas não o início isolado das quedas. Então, embora tenham ocorrido mudanças significativas nas séries criminais do RS a partir de 2019, existem evidências de que as tendências de queda já vinham de anos anteriores e de que talvez um fator nacional ou regional explique em parte estas quedas.
Observamos anteriormente que existem métodos mais ou menos robustos de avaliar o impacto das políticas públicas nas tendências criminais. O grande problema em analisar apenas as séries do RS é que não temos um bom contrafactual – como um grupo de controle – para estimar se o desempenho no RS foi melhor do que em Estados similares e de quanto foi esse impacto. Os métodos utilizados não permitem inferências causais.
Uma análise mais robusta exigiria o emprego de métodos quase experimentais, como grupos sintéticos (SCM), diferença em diferenças (DiD) ou Event Study, modelos que permitam verificar se o comportamento do RS após 2019 difere significativamente do comportamento médio dos outros Estados, mesmo controlando tendências pré-existentes. Estudos deste tipo são bem mais trabalhosos e estão fora do âmbito deste artigo.
A intenção aqui é alertar para a complexidade da avaliação de políticas públicas e de analisar minimamente os dados existentes para verificar sua consistência lógica em termos temporais e espaciais. O governo do RS vem adotando políticas públicas de segurança baseadas em evidências, validadas pela literatura, e é possível que estas medidas tenham aprofundado e intensificado tendências de queda preexistentes. Mas corroborar isso de forma robusta não é tarefa fácil. Repito aqui, portanto, minha ladainha usual: é preciso separar recursos para avaliação sistemática das políticas públicas. Segurança pública é assunto demasiado sério para achismos, que infelizmente ainda predominam em muitas análises na área.
Referências:
- Weisburd, D., Mastrofski, S. D., McNally, A. M., Greenspan, R., & Willis, J. J. (2003). Reforming to preserve: CompStat and strategic problem solving in American policing. Criminology & Public Policy, 2(3), 421-456.
- Silverman, E. B. (2001). NYPD Battles Crime: Innovative Strategies in Policing. Northeastern University Press.
- Weisburd, D., Telep, C. W., Hinkle, J. C., & Eck, J. E. (2011). The effects of problem‐oriented policing on crime and disorder. Campbell Systematic Reviews, 7(1), 1-87. https://doi.org/10.4073/csr.2010.14
- Banco Mundial (2012). Avaliação de impacto dos programas de prevenção da criminalidade em Minas Gerais: Relatório final. Brasília: Banco Mundial.
- Souza, R., & Cano, I. (2015). A redução dos homicídios em Minas Gerais: uma avaliação de impacto. Revista Brasileira de Segurança Pública, 9(1), 10-32.
- Guedes, E. R. (2018). Lições do Pacto Pela Vida: sucessos e desafios na política de segurança pública em Pernambuco. Revista Brasileira de Segurança Pública, 12(2), 134-157.
- Lum, C., Koper, C. S., & Telep, C. W. (2020). Evidence-Based Policing: Translating Research into Practice. Crime Science, 9(1), 1-12.
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