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{ ARTIGO }

Um retrato da violência contra a mulher

Para Tulio Kahn, de um lado há avanços inegáveis na classificação de feminicídio e na concessão de medidas protetivas; de outro, grande dificuldade em identificar as mulheres com maior risco letal

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

 

Existem alguns indicadores de violência contra a mulher publicados pelo Ministério da Justiça e pelo CNJ que podem ser monitorados mensalmente. O Sinesp/MJ divulga a quantidade de feminicídios, bem como o número de homicídios, por gênero. O CNJ, por sua vez, traz os dados de novos casos de feminicídio, violência doméstica e medidas protetivas concedidas.

Neste estudo analisamos as séries anuais entre 2020 e 2025, com dados projetados para o segundo semestre a fim de tornar a comparação possível. Entre 2015 e 2019, o País viveu uma escalada dos feminicídios, com crescimento superior a 10% ao ano. A partir de 2020, a curva se estabilizou em torno de 1,3 mil a 1,5 mil vítimas anuais. Para 2025, com dados projetados, a expectativa é de 1.421 casos, mantendo o padrão dos últimos anos. Já os homicídios de mulheres sem classificação de feminicídio apresentaram declínio na casa dos 20% no período. De quase 2,7 mil em 2020, devem fechar 2025 em torno de 2,1 mil. A queda sugere uma reclassificação de casos, com maior enquadramento de assassinatos de mulheres como feminicídio. Essa mudança aparece claramente na relação entre feminicídios e homicídios comuns: em 2020, metade dos assassinatos de mulheres eram tipificados como feminicídio; em 2025, dois terços já o são.

No campo judicial, a resposta mostra crescimento expressivo. Os processos novos de feminicídio no CNJ saltaram de 3,7 mil em 2020 para quase 10 mil em 2025. Chama a atenção, portanto que o número de casos novos de feminicídio no Judiciário – em todas as instâncias – é superior ao número de feminicídios e mesmo superior aos feminicídios e mulheres vítimas de homicídios somados. Em 2025, o número de casos novos de feminicídio na Justiça é cerca de três vezes maior que os feminicídios registrados nas polícias. Mesmo que a Justiça classifique inicialmente todos os homicídios de mulheres como feminicídio, o número de casos abertos ainda é maior. Isso acontece porque o dado do CNJ mostra a intensidade da resposta judicial, que pode ser múltipla para cada vítima. O CNJ provavelmente contabiliza todos os processos judiciais que mencionam a tipificação, em todas as instâncias, e não vítimas. Trata-se de hipóteses que precisam ser aprofundadas, mas chama a atenção a discrepância entre os dados da polícia e da justiça.

Assim como os casos novos de feminicídio, os casos de violência doméstica estão explodindo na justiça: mais de 1 milhão de novos processos por ano, chegando a 1,07 milhão em 2025, mantido o ritmo no segundo semestre. Note-se, contudo, que dentro desse universo os feminicídios representam menos de 0,2% e essa proporção vem caindo. Em 2020, eles eram 0,22% dos casos; em 2025, 0,13%. Essa tendência reforça a ideia de que os feminicídios são a face mais extrema e letal de um fenômeno muito mais amplo. Mostra também que, se do ponto de vista absoluto os feminicídios estão estabilizados na casa dos 1.500/ano, como proporção dos casos de violência doméstica os feminicídios estão caindo.

Estima-se que apenas de 50 a 70 vítimas de feminicídio contavam com medidas protetivas no momento da morte (Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), uma porcentagem pequena e que sugere a ineficiência da medida. Embora as medidas estejam hoje mais acessíveis, raramente chegam às mulheres em risco letal ou falham na sua execução prática. Mas para avaliar a eficiência seria preciso também estimar quantos feminicídios foram evitados com as medidas protetivas, algo muito mais complexo. Em 2020, apenas 55% dos casos de violência doméstica resultavam em medidas protetivas; em 2025, esse índice sobe para 86%. A expansão mostra que o Judiciário tem ampliado significativamente a cobertura protetiva, tornando a resposta mais abrangente. Esta expansão das medidas protetivas poderia explicar talvez a diminuição relativa dos feminicídios, frente ao crescimento dos casos de violência doméstica?

O retrato é duplo: de um lado, observamos avanços inegáveis na classificação de feminicídio, na judicialização dos casos e na concessão de medidas protetivas em casos de violência doméstica; de outro, uma grande dificuldade em identificar as mulheres com maior risco letal. Em muitos casos de feminicídio não existe sequer um boletim de ocorrência anterior de violência.

O desafio para os próximos anos é conseguir identificar estes casos de risco e que não chegam ao conhecimento do sistema de justiça criminal e integrar ainda mais polícia, justiça e rede de atendimento social, garantindo que os instrumentos legais e as políticas de atendimento se traduzam em proteção efetiva e em redução real da letalidade contra mulheres.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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