José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Lisboa. Semana passada falei do amigo Fernando Pessoa. E como estamos na sua cidade, para ele só “uma eterna verdade vazia e perfeita” (Lisbon Revisited I), já digo que, durante os 10 anos que consumi escrevendo as 800 páginas de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, fui a Lisboa (exatamente) 30 vezes.
Nada a reclamar, ao contrário. Foi sempre bom. E trata-se do livro, sobre Pessoa, mais vendido e mais traduzido no mundo (12 países). Digo só para me gabar, deve ser a idade.
Nessas idas e vindas, deram-se fatos pitorescos. Relato aqui só um, entre muitos. Quando pretendi visitar o quarto em que viveu, ainda criança, no Largo de São Carlos.
O endereço do apartamento era número 4 de polícia, assim se diz ainda hoje, quarto andar esquerdo (de quem sai do elevador ou da escada). O edifício pertencia, então, à Fidelidade Mundial Seguros. Cheguei na portaria, mostrei os rascunhos do livro e pedi para subir. O porteiro, Fernando José da Costa Araújo, respondeu sem nenhuma simpatia
‒ Não tenho autorização para deixar o sr. dr. subir.
‒ Por favor, gostaria de falar com o diretor da empresa ou sua secretária.
‒ O sr. dr. deve se dirigir à sede.
‒ Por favor, informe o telefone.
‒ Não tenho autorização para isso.
‒ Pode emprestar (apontei) as Páginas Amarelas?
‒ Não.
Ocorre que, precisamente após sua última frase, abriu a porta do elevador. Bem na minha frente. Então lhe disse
– Por favor chame a polícia para me prender que, sem sua autorização, estou subindo ao quarto andar.
E subi mesmo. Para ver o Tejo brilhando em duas janelas de seu quarto. E o sino da minha aldeia tocando, em frente, no outro lado da Rua Serpa Pinto. Pessoa lembra dele em poema famoso (sem título, sem data):
‒ Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Nenhuma dúvida de ser aquele mesmo. “O sino da minha aldeia é o da Igreja dos Mártires, ali no Chiado” (Pessoa, carta de 11/12/1931 para Gaspar Simões, amigo e depois biógrafo). Única que conheço onde os sinos ficam não à frente, mas nos fundos. Ao sair do elevador, na volta, o segurança estava com cara de poucos amigos
‒ O sr. dr. subiu sem minha autorização?
‒ Foi.
‒ E agora, o que hei de fazer?
‒ O sr. chama a polícia, vou sentar, esperamos e ela decide se me prende. Ou o senhor me deixa ir.
‒ Não sei, sr. dr.
‒ Eu sei.
Dito isto, lhe dei boa tarde e fui embora. Deu tudo certo. Graças. Adeus.
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