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Falta aos brasileiros a sede de verdade

Os maus governantes já destruíram nosso passado, fingem ignorar o presente e podem comprometer o futuro e as novas gerações, escreve Samuel Hanan

Samuel Hanan, ex-vice-governador do Amazonas, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum   Sigmund Freud (1856-1939), o famoso psicanalista austríaco, escreveu: “As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e nem sabem viver sem elas”. Pois os governantes brasileiros parecem ter adotado esse pensamento como linha de conduta porque abusam da negação da verdade e da venda de ilusões. No mundo real, mais de 60% da população brasileira ganha até 1 salário mínimo (R$ 1.412,00/mês brutos). Em 2023, a renda média per capita nacional, sem descontos da Previdência e tributos, foi de apenas R$ 1.848,00/mês, o correspondente a 1,42 salário mínimo. Além disso, o governo reduz o poder de compra do cidadão aplicando a carga tributária de 33% a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) ao não fazer a correção anual da tabela do Imposto de Renda. A contrapartida, no entanto, é pífia porque o governo federal não oferece à população serviços universais de qualidade em segurança pública, educação, saúde, saneamento e habitação. Vale recordar o pensamento do escritor e político norte-americano Harry Browne (1933-2006): “O Governo é bom em uma coisa. Ele sabe como quebrar as suas pernas apenas para depois lhe dar uma muleta e dizer: ‘veja, se não fosse pelo governo, você não seria capaz de andar!’". Se fosse vivo, Browne assistiria um festival de ‘muletas’ no Brasil, como bolsa-família, vale-gás e tantos outros. Como se não bastasse, agora está em gestação um novo benefício com o pomposo nome de “cashback”. Mais lógico e eficaz seria atacar as causas, mas nada se fala, por exemplo, sobre a redução de impostos da cesta básica, esta sim uma medida capaz de aliviar o bolso do brasileiro de baixa renda. Este é mais um dos muitos desacertos do setor público brasileiro, problema antigo que se acentuou sobretudo a partir de 2002, com registro de déficit público nominal crônico e crescente porque não foi combatido pelos governos. O ápice se deu em 2023, quando superou R$ 967 bilhões, o equivalente a 8,8% do PIB. Foi praticamente o dobro do registrado no ano anterior, quando ficou em R$ 480 bilhões. Em 2024, tudo caminha para a mesma direção, prevendo-se a repetição do déficit gigantesco e semelhante ao de 2023, o que implica em inevitável aumento de endividamento público para financiar a cobertura desses déficits. A dívida pública brasileira já é superior a R$ 8,1 trilhões, devendo ao final desse ano superar R$ 9 trilhões. Não há possibilidade de crescimento saudável com tamanho rombo. Espanta também a generosidade dos governos brasileiros na concessão de empréstimos expressivos para países que não têm o hábito de cumprir compromissos, sempre flertando com a inadimplência. São empréstimos expressivos, normalmente concedidos sem o mesmo rigor da aferição da capacidade de pagamento utilizada, por exemplo, em relação a um industrial brasileiro em busca de crédito para produzir e gerar empregos. O Brasil precisa fazer uma correção de rumo com urgência, sob pena de perdurar o sofrimento de seu povo, já farto de discursos fáceis e de medidas meramente paliativas para problemas graves. A polarização política – tão em moda – não ajuda em nada. Como já disse Dalai Lama, o mundo precisa desesperadamente de mais pacificadores, restauradores da ordem e da harmonia, e até mesmo de contadores de histórias e pessoas amorosas. Essa é também uma necessidade nacional. Os maus governantes já destruíram nosso passado, fingem ignorar o presente e podem comprometer o futuro e as novas gerações. É preciso dar um basta e construir uma nova nação. O Brasil dos sonhos dos mais de 200 milhões de brasileiros seguramente não é o país de hoje, repleto de privilégios e contaminado pela impunidade.     Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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Brasil precisa aperfeiçoar mecanismos de defesa civil

Coronel Henguel Ricardo Pereira, coordenador da Defesa Civil de São Paulo, falou no Espaço Democrático

[caption id="attachment_38502" align="aligncenter" width="560"] O coronel Henguel Ricardo Pereira: "O planeta está aquecido e as tragédias estão acontecendo com maior frequência"[/caption]   Redação Scriptum   Com maior ou menor impacto, 90% dos 497 municípios do Rio Grande do Sul sofreram grandes perdas humanas e materiais com as inundações de maio e junho. As consequências foram assustadoras: cerca de 2,3 milhões de pessoas diretamente afetadas, com quase 400 mil desabrigados e 200 mortos. O fenômeno que os especialistas chamam de evento climático extremo mostrou como o Brasil ainda precisa aperfeiçoar seus mecanismos de defesa civil. “O planeta está aquecido e as tragédias estão acontecendo com maior frequência”, diz o coronel Henguel Ricardo Pereira, secretário-chefe da Casa Militar do Governo de São Paulo e coordenador da Defesa Civil paulista em palestra no Espaço Democrático – a fundação de estudos e formação política do PSD. Formado em Direito e pós-graduado em Engenharia Civil, Henguel, que tem mais de 35 anos de experiência na área, acompanhou de perto a tragédia gaúcha, para onde se deslocou para atuar em maio. Ele acaba de voltar do Japão, onde conheceu os sistemas de prevenção de um país que convive de maneira frequente com enchentes, deslizamentos de terra e até terremotos. Ali, constatou como a prevenção de desastres naturais está entranhada na cultura local. “Nós não temos o grau de conscientização dos japoneses”, contou. “Eles participam das ações de treinamento e obedecem as regras definidas pelas autoridades públicas, o que minimiza muito os efeitos das catástrofes”. Para fazer contraponto ao exemplo japonês, Henguel citou um episódio que ocorreu com ele há poucos anos. “Nós estávamos atendendo a um deslizamento e uma garota me procurou para contar que o pai não queria deixar a sua casa, que já estava metade destruída”, lembrou. “Metade da casa já havia sido arrastada morro abaixo, havia o risco de desabar o resto e ele queria continuar ali”. O coronel aponta, porém, que a conscientização da população – especialmente a que ocupa áreas de risco – é apenas uma face do sistema de prevenção. Outra é a tecnologia, que pode ser a principal aliada da prevenção. Hoje, os radares meteorológicos usados no Brasil são antigos, com quase 30 anos de operação. “Em São Paulo temos dois deles, em Presidente Prudente e Bauru; recentemente instalamos um moderno em Ilhabela e em outubro instalaremos mais um na região de Campinas”, disse. “Percebemos que além dos dois que tínhamos no planalto, precisávamos de radares na costa porque as nossas frentes frias ou vem do Sul do País ou do mar”. Henguel defende que este trabalho de conscientização chegue inclusive ao sistema de ensino. “Crianças de quinta e sexta séries precisam entender o risco e podem ser instruídas na escola”.   [caption id="attachment_38503" align="aligncenter" width="560"] Reunião semanal de colaboradores do ED[/caption]   Por fim, o coordenador da Defesa Civil do Estado de São Paulo aposta no treinamento das pessoas e na criação dos sistemas de alerta de massa para reduzir o risco de grandes tragédias humanas. O Brasil já tem em muitas cidades os sistemas de sirenes de alerta, mas vai ganhar nos próximos meses o sistema conhecido como Cell Broadcasting, por meio do qual alertas são enviados por meio do celular com base em um sistema de georreferenciamento. As companhias de telecomunicações passarão a transmitir mensagens para aparelhos que estão nas áreas afetadas por emergências naquele momento, independentemente do DDD da linha. “É um sistema usado no Primeiro Mundo, mas que no Brasil ainda não operava por razões legais que agora foram resolvidas graças à iniciativa do governo de São Paulo, que encontrou as soluções necessárias com as operadoras e as levou para o governo federal”. Participaram da palestra do coronel Henguel Ricardo Pereira os economistas Luiz Alberto Machado e Roberto Macedo, os cientistas políticos Rubens Figueiredo e Rogério Schmitt, o sociólogo Tulio Kahn, o gestor público Januario Montone, a secretária do PSD Mulher nacional Ivani Bôscolo, o superintendente da fundação, João Francisco Aprá, e os jornalistas Eduardo Mattos e Sérgio Rondino, coordenador de comunicação do Espaço Democrático.

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Concentração de riqueza e desigualdade crescem cada vez mais

Economista Roberto Macedo comenta os mais recentes números da pesquisa do banco suíço UBS

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Memórias de um grande protagonista

Economista Luiz Alberto Machado escreve sobre o livro que acaba de ser lançado por Rubens Ricupero

Luiz Alberto Machado

Edição Scriptum 

De acordo com uma de suas definições, protagonista é o personagem ou o indivíduo que possui o papel de maior destaque nas obras em que é possível construir uma trama, como filmes, livros, peças teatrais etc. Trata-se, então, de um elemento da história narrativa que ganha importância e protagonismo pelas ações realizadas por ele, para ele ou sobre ele.

Fiz questão de iniciar assim este artigo-resenha com o objetivo de deixar claro que não é fácil ser protagonista, e aqueles que alcançam tal condição o fazem, via de regra, numa única atividade, quando não num único papel.

Decididamente, este não é o caso de Rubens Ricupero, cujo livro, Memórias, acaba de ser publicado pela Editora Unesp. Com absoluta certeza, aqueles que tiverem o prazer de percorrer os 47 capítulos nas mais de 700 páginas da autobiografia concordarão que Ricupero foi protagonista nos diversos papeis que representou ao longo de sua trajetória, entre os quais o de professor, diplomata, embaixador, ministro, escritor e historiador. Por trás desses diversos papeis, Ricupero foi, acima de tudo, um cidadão que jamais deixou de acreditar em suas grandes paixões: o Brasil, a Igreja Católica, os amigos e a família, com destaque especial para sua esposa, dona Marisa, a quem atribui o sucesso compartilhado numa convivência de mais de 60 anos.

Além das paixões mencionadas, Ricupero foi um eterno perseguidor de pelo menos três causas pelas quais jamais deixou de se empenhar: 1ª) o combate à desigualdade − no plano internacional, entre países desenvolvidos e não desenvolvidos e, no plano interno, à persistente desigualdade que gera um abismo entre a minoria detentora de parcela expressiva da renda e a maioria que vive muitas vezes em condições de pobreza e até de miséria; 2ª) a preocupação com o meio ambiente e os crescentes riscos representados pelas mudanças climáticas; 3ª) a defesa dos direitos humanos, frequentemente ameaçados por governantes ou regimes autoritários em várias partes do mundo.

Descendente de família humilde de origem italiana, Ricupero utiliza os capítulos iniciais para descrever os momentos de transição decorrentes da vinda da primeira geração que deixou a Itália para viver no Brasil, mais especificamente no bairro do Brás. Para relatar o Brasil da sua infância, ele recorreu aos diários de sua mãe, que registrava histórias dos diversos integrantes da família de imigrantes italianos.

Passando à sua fase de estudante, Ricupero discorre sobre as primeiras etapas em colégios públicos do bairro, nos quais convivia com colegas de origem semelhante à dele. Desde essa fase, chama a atenção seu interesse pela História, quer por meio das narrativas de parentes, quer por meio dos livros que aprendeu a apreciar desde muito cedo.

Um capítulo interessantíssimo denomina-se A curva perigosa dos vinte. Nele, com base em sua própria experiência, Ricupero se opõe veementemente à habitual caracterização de anos dourados que marcam o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Para ele, essa idade é marcada por uma série de dúvidas naturais numa fase em que é preciso tomar decisões que terão impacto no restante da vida de qualquer pessoa. Dessas decisões, uma das mais relevantes diz respeito à escolha do que estudar e, por extensão, da carreira profissional. Até formar-se em Direito pela Universidade de São Paulo, Ricupero iniciou diversos outros cursos, desistindo dos mesmos pouco tempo depois, ao reconhecer que não correspondiam às suas expectativas.

A entrada para o Itamaraty, por meio de concurso para o Instituto Rio Branco, quando foi examinado por Guimarães Rosa, é marcante, assim como os anos em que viveu sozinho no Rio de Janeiro, descobrindo um mundo bastante distinto do que conhecera até então.

Já formado, abandonou o posto na Divisão Política (chamada pelos diplomatas de "cérebro pensante" do Itamaraty) nas belíssimas instalações da instituição no Rio de Janeiro e, contrariando recomendações de pessoas mais experientes, apresentou-se como voluntário para trabalhar em Brasília, destino que ninguém queria. A decisão teve motivação econômica, uma vez que ganharia mais do que o dobro com a transferência, o que lhe permitiria abreviar o tempo para o almejado casamento. Embora já tivesse visitado a cidade ainda na fase de obras, chegou para ficar no dia 10 de março de 1961, cerca de quarenta dias depois da posse de Jânio Quadros. Nessa permanência em Brasília, Ricupero acompanhou de perto a renúncia de Jânio e suas peripécias, contribuiu para a criação de relações culturais com o continente africano e testemunhou as discussões envolvendo a conveniência de dar posse ao vice-presidente João Goulart.

Após casar-se com dona Marisa nos primeiros dias de março de 1961, voltou a Brasília, ao ser confirmado no seu posto por San Tiago Dantas, que ocupou a pasta das Relações Exteriores durante a breve experiência parlamentarista com Tancredo Neves. Com o restabelecimento do presidencialismo após o plebiscito de janeiro de 1963, San Tiago Dantas converteu-se em ministro da Fazenda, "empenhado, ao lado de Celso Furtado, no Planejamento, em salvar a economia do colapso. Durou cinco meses no posto, menos do que os dez meses como chanceler, derrotado pela impaciência por resultados do programa de estabilização e pela oposição de Brizola, líder do que chamava de 'esquerda negativa'".

Antes de prosseguir, vale a pena reproduzir três trechos de Ricupero em que expressa claramente sua admiração por San Tiago Dantas. O primeiro, logo depois de conhecê-lo num jantar promovido por Maury Gurgel Valente:

Foi a impressão mais forte que recebi em toda a minha vida do poder da palavra como pensamento vivo e concreto, da força do verbo que organiza e explica o mundo e a história por meio da luz da razão e da inteligência. San Tiago sabia ouvir, não deixava passar afirmação sem questionar e provar sua veracidade. Falava de maneira pausada, com a pronúncia culta do mais expressivo português que se poderia esperar da língua falada no Brasil.

O segundo, quando já enfermo e afastado da vida pública, San Tiago procurava evitar o golpe de 1964:

Golpe que ele tentou até o fim evitar com as poucas forças que lhe restavam. Empenhou-se junto a Jango para contrabalançar a influência nefasta dos radicais. Aconselhou-o a acalmar as paixões, desencorajando iniciativas que seriam vistas como uma escalada de provocações: o comício de 13 de março na Central do Brasil, a reunião de marinheiros e fuzileiros navais na sede do Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro, o comparecimento ao encontro no Automóvel Clube da Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar em 30 de março.

O terceiro, por fim, logo após o afastamento de João Goulart:

Consumado o golpe, [San Tiago] não desanimou. Recordou-se talvez do papel que tivera em outubro de 1945, ao sugerir aos militares dar posse ao presidente do Supremo Tribunal Federal para substituir o deposto Getúlio, evitando a formação de uma Junta Militar. Sendo outras as circunstâncias, propôs que o Congresso elegesse como presidente transitório o marechal Eurico Gaspar Dutra, ex-presidente, militar de mais alta hierarquia, portanto impossível de recusar. A devoção de Dutra à Constituição de 1946, que ele mesmo promulgara, poderia garantir um retorno rápido à democracia. Enquanto se  processavam as articulações, Juscelino, impaciente em assegurar sua candidatura nas eleições de 1965, teria se precipitado, prometendo ao general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército e da conspiração, que o PSD, o maior partido no Congresso, o apoiaria na escolha indireta para presidente.

Dizem que, ao ouvir a notícia, San Tiago teria exclamado: "Juscelino acaba de entregar o poder aos militares por vinte anos!"

Dando sequência à carreira, Ricupero serviu em Viena (onde recebeu a notícia de que era perseguido e ameaçado de prisão pelos militares no poder), em Buenos Aires e em Quito, locais em que fazia qualquer serviço, dedicando-se basicamente a assuntos culturais, comerciais e outros, na periferia do eixo político e econômico da diplomacia.

Mais tarde, já promovido a ministro de primeira classe e chefiando o Departamento das Américas do Itamaraty, uma reviravolta. Procurado por Francisco Dornelles, recebeu a notícia de que fora convidado a se tornar assessor de política externa na campanha à presidência de Tancredo Neves. Autorizado pelo ministro Saraiva Guerreiro a prestar esse apoio em caráter pessoal, Ricupero recorda que até a eleição indireta realizada em 15 de janeiro de 1985 pouco teve a fazer, a não ser uma ou duas análises de temas da atualidade.

Passada a eleição, foi incluído na pequena comitiva que acompanhou o presidente eleito em viagem pelo mundo. De 24 de janeiro a 7 de fevereiro, a viagem incluiu encontros com o papa João Paulo II, o primeiro-ministro italiano Bettino Craxi na Itália, o presidente François Mitterrand na França, o primeiro-ministro Mário Soares e o presidente Ramalho Eanes, em Portugal, o primeiro-ministro Felipe González e o rei Juan Carlos, na Espanha, o presidente Ronald Reagan, o vice George Bush e o secretário de Estado George Schultz, nos Estados Unidos, o presidente Miguel de la Madrid, no México, o presidente Belaúnde Terry, no Peru, e o presidente Raúl Alfonsín, na Argentina. Reproduzindo hábito de sua mãe, Ricupero registrou dados da viagem numa agenda de capa vermelha que recebera de brinde da Editora Abril. Em 2010, 25 anos mais tarde, esses registros foram publicados no livro Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo Neves (São Paulo: Imprensa Oficial).

Com a morte de Tancredo, Ricupero acompanhou de Brasília os anos iniciais da Nova República até que, em meados de 1987, fracassado o Plano Cruzado, passado o susto da moratória da dívida externa e com os trabalhos da Assembleia Constituinte avançados, pediu para sair do Brasil. Mesmo que inconscientemente, estava preocupado com o futuro do Brasil pós-Constituição, apreensão já expressada pelo jornalista Carlos Castello Branco do Jornal do Brasil.

Neste ponto, vale reproduzir o comentário de Ricupero a respeito de Ulysses Guimarães e da nova Constituição:

Em cerimônia na qual recebeu a Legião de Honra na embaixada da França em Brasília, lembro do discurso espirituoso em que o velho parlamentar prometia seguir o modelo de constituição ideal segundo Napoleão: que fosse curta e vaga! Não preciso dizer que acabou por sair texto interminável e detalhado.

Estavam disponíveis, na época, a embaixada em Paris e os organismos junto às Nações Unidas sediados em Genebra. "Sonho de todo diplomata, na primeira, além das atrações evidentes, o trabalho seria mais fácil e agradável. [...] Preferi tentar Genebra, posto mundanamente menos brilhante, de trabalho intenso, que representava o duplo desafio do desconhecido: o trabalho multilateral e a concentração no GATT".

Esta passagem por Genebra durou três anos e foi muito profícua. Sem maior experiência anterior com negócios comerciais, Ricupero foi rapidamente dominando os principais temas e, ao deixar o posto para assumir a embaixada nos Estados Unidos, encontrava-se como presidente das Partes Contratantes do GATT.

Dois aspectos sobre a estada em Washington. No primeiro, relacionado ao trabalho como diplomata, Ricupero relata o desafio de representar um país em crise:

Com o País paralisado pela crise, não podendo fazer grande coisa junto ao governo americano, aproveitei para dedicar boa parte do tempo a participar ativamente de seminários, discussões, eventos patrocinados pelos think tanks de Washington, capital mundial dessas entidades. Encorajei os funcionários da embaixada a fazerem o mesmo, dentro e fora da capital norte-americana, em várias cidades e universidades dos Estados Unidos. Tornei-me figura habitual desses seminários, de enorme influência na formação da opinião pública.

O segundo refere-se a aspecto não diretamente afeito às atividades diplomáticas, mas que certamente chamará a atenção dos leitores. Já nos derradeiros dias em Washington, Ricupero foi procurado por Ruth Escobar, companheira de adolescência do bando de aspirantes a intelectuais que se encontravam na Biblioteca Municipal Mário de Andrade em São Paulo, com a solicitação para hospedá-la juntamente com a amiga Shirley MacLaine, que iria passar uma semana em Washington para um show com Frank Sinatra, não querendo ficar em hotel para evitar o assédio da imprensa e dos fãs. “Para encurtar a história, Marisa e eu acabamos por acolhê-las e, em razão disso, assistimos ao show de inauguração do Warner Theatre, ao fim do qual fomos convidados por Frank Sinatra para jantar com ele no mais luxuoso restaurante chinês da cidade”.

Nos capítulos seguintes, Ricupero descreve sua passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, a convite de Itamar Franco e, posteriormente, sua transferência para o Ministério da Fazenda, sendo o quinto a ocupar o posto na gestão de Itamar, sucedendo Fernando Henrique Cardoso, obrigado a se desincompatibilizar para concorrer à presidência da República. No exercício do cargo, Ricupero teve papel decisivo no momento chave para o êxito do Plano Real representado pelo lançamento da nova moeda.

Tendo o lançamento do livro coincidido com o aniversário de 30 anos do real, volume considerável de matérias foi divulgado sobre o assunto, dispensando-me de abordá-lo neste artigo. Fica, porém, a recomendação para a leitura atenta do capítulo Algodão entre cristais, em que Ricupero narra episódios interessantíssimos envolvendo a difícil relação entre o presidente Itamar Franco e os integrantes da equipe responsável pela concepção e implementação do Plano Real.

Depois de se referir aos momentos difíceis que se seguiram ao escândalo da parabólica, responsável por sua saída do Ministério da Fazenda, Ricupero detalha, nos capítulos seguintes, a volta às raízes italianas no período em que foi embaixador em Roma e a segunda passagem por Genebra, onde por nove anos exerceu o cargo de secretário-geral da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), entidade instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964, para ser o ponto focal  do Sistema ONU dedicado ao tratamento integrado das questões de comércio e desenvolvimento, e de temas conexos, como finanças, tecnologia, investimentos e empreendedorismo.

Nos capítulos finais, Ricupero relembra alguns bons momentos que teve a oportunidade de experimentar ao longo da vida dedicando-se a clássicos da leitura, da música e das artes em geral, bem como os livros que escreveu e as batalhas políticas de que participou.

Ao fazer um balanço final, Ricupero recorda os altos e baixos que caracterizaram o Brasil durante os 87 anos de sua vida. Afirma que "nas horas sombrias, volta com força a tentação de pôr a culpa em nossa herança cultural e histórica, nas mazelas e fantasmas que herdamos do passado. William Faulkner nos lembra que o passado não morre, nem mesmo é passado, pois não acabou de passar. Ou rimos amargamente com a frase de Millôr Fernandes, 'o Brasil tem um passado enorme pela frente'".

Revelando gratidão pela vida que Deus lhe deu, Ricupero reconhece que

no Ocidente ou no Oriente, não fomos ainda capazes de construir um sistema social e econômico, capitalismo ou socialismo, capaz de superar os desafios principais da humanidade: o aquecimento global, a desigualdade crescente, o desemprego estrutural, a falta de participação e democracia. Resta assim um imenso, talvez utópico, programa de trabalho para preencher as próximas décadas com obras de construção e paz, não de destruição e guerra.

Desejando que seu livro Memórias seja lido com o olhar no futuro e não no passado conclui:

Não vou nem tentar adivinhar o que nos reservam em mudança os anos futuros, pois é inútil. Com todos os avanços da inteligência artificial e da computação, Deus, se quiser, ainda pode desfazer os planos das nações e reduzir a pó os projetos dos povos. Só posso esperar que o futuro seja melhor que o presente, que o amanhã nos traga tempos melhores que os de ontem. Defronte a ameaças antigas e novas, da volta do flagelo da guerra e da peste, do risco de divisão do mundo e de nova guerra fria, espero que a paz, a razão e o entendimento acabem por prevalecer.

Tendo tido o privilégio de conviver por mais de dez anos com Rubens Ricupero na direção da Faculdade de Economia da FAAP, confesso que a leitura de Memórias me permitiu conhecer novas facetas da vida do embaixador e de reviver histórias que me foram relatadas por esse grande protagonista que, como observado no comentário feito pela Escola de Repertório, "literalmente assinou parte da história do Brasil: sua assinatura estampou as primeiras cédulas do real, um marco na economia do País que, até então, vivia às voltas com a hiperinflação e planos econômicos frágeis".

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

       

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