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Brasil é último colocado em capacidade de identificar fake news na internet

Estudo ‘Questionário da Verdade’ foi realizado em 21 países e foi publicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

[caption id="attachment_38488" align="aligncenter" width="766"] Pesquisa de campo ouviu mais de 40.760 pessoas em mais de duas dezenas de países[/caption] Redação Scriptum com TV Cultura O Brasil ficou em último lugar em uma pesquisa sobre a capacidade de identificar conteúdos falsos na internet, de acordo com o estudo ‘Questionário da Verdade’ , aplicado em 21 países e publicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Reportagem publicada no site da TV Cultura aponta que a constatação é efeito dos ambientes em que o brasileiro costuma se informar. De acordo com a pesquisa, 85% das pessoas no Brasil têm o hábito de se informar pelas redes sociais. Enquanto boa parte dos brasileiros se informam pelas redes, apenas 30% da população do Japão, da Alemanha, do Reino Unido e da Finlândia buscam informações nessas fontes. No Brasil, 54% das pessoas acertaram na identificação de notícias verdadeiras. Colômbia, Suíça, França e Estados Unidos ficaram logo acima. Em primeiro lugar está a Finlândia, com 66% de acertos, seguida por Reino Unido, Noruega e Irlanda. No total, mais de 40.760 pessoas foram entrevistadas. "Nós estamos potencialmente nas redes em aplicativos de mensageria, por onde se criam grupos. Esses grupos têm muitos fatores de influência. Ou é o grupo da família, ou é o grupo da religião, ou é o grupo do futebol, é um grupo da cerveja, então tem sempre alguns que são os maiores influenciadores desses grupos e quando vem [a informação] por alguém que é a sua autoridade religiosa você confia naquilo”, explica Ana Regina Rêgo, coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação.

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Memórias de um grande protagonista

Economista Luiz Alberto Machado escreve sobre o livro que acaba de ser lançado por Rubens Ricupero

Luiz Alberto Machado

Edição Scriptum 

De acordo com uma de suas definições, protagonista é o personagem ou o indivíduo que possui o papel de maior destaque nas obras em que é possível construir uma trama, como filmes, livros, peças teatrais etc. Trata-se, então, de um elemento da história narrativa que ganha importância e protagonismo pelas ações realizadas por ele, para ele ou sobre ele.

Fiz questão de iniciar assim este artigo-resenha com o objetivo de deixar claro que não é fácil ser protagonista, e aqueles que alcançam tal condição o fazem, via de regra, numa única atividade, quando não num único papel.

Decididamente, este não é o caso de Rubens Ricupero, cujo livro, Memórias, acaba de ser publicado pela Editora Unesp. Com absoluta certeza, aqueles que tiverem o prazer de percorrer os 47 capítulos nas mais de 700 páginas da autobiografia concordarão que Ricupero foi protagonista nos diversos papeis que representou ao longo de sua trajetória, entre os quais o de professor, diplomata, embaixador, ministro, escritor e historiador. Por trás desses diversos papeis, Ricupero foi, acima de tudo, um cidadão que jamais deixou de acreditar em suas grandes paixões: o Brasil, a Igreja Católica, os amigos e a família, com destaque especial para sua esposa, dona Marisa, a quem atribui o sucesso compartilhado numa convivência de mais de 60 anos.

Além das paixões mencionadas, Ricupero foi um eterno perseguidor de pelo menos três causas pelas quais jamais deixou de se empenhar: 1ª) o combate à desigualdade − no plano internacional, entre países desenvolvidos e não desenvolvidos e, no plano interno, à persistente desigualdade que gera um abismo entre a minoria detentora de parcela expressiva da renda e a maioria que vive muitas vezes em condições de pobreza e até de miséria; 2ª) a preocupação com o meio ambiente e os crescentes riscos representados pelas mudanças climáticas; 3ª) a defesa dos direitos humanos, frequentemente ameaçados por governantes ou regimes autoritários em várias partes do mundo.

Descendente de família humilde de origem italiana, Ricupero utiliza os capítulos iniciais para descrever os momentos de transição decorrentes da vinda da primeira geração que deixou a Itália para viver no Brasil, mais especificamente no bairro do Brás. Para relatar o Brasil da sua infância, ele recorreu aos diários de sua mãe, que registrava histórias dos diversos integrantes da família de imigrantes italianos.

Passando à sua fase de estudante, Ricupero discorre sobre as primeiras etapas em colégios públicos do bairro, nos quais convivia com colegas de origem semelhante à dele. Desde essa fase, chama a atenção seu interesse pela História, quer por meio das narrativas de parentes, quer por meio dos livros que aprendeu a apreciar desde muito cedo.

Um capítulo interessantíssimo denomina-se A curva perigosa dos vinte. Nele, com base em sua própria experiência, Ricupero se opõe veementemente à habitual caracterização de anos dourados que marcam o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Para ele, essa idade é marcada por uma série de dúvidas naturais numa fase em que é preciso tomar decisões que terão impacto no restante da vida de qualquer pessoa. Dessas decisões, uma das mais relevantes diz respeito à escolha do que estudar e, por extensão, da carreira profissional. Até formar-se em Direito pela Universidade de São Paulo, Ricupero iniciou diversos outros cursos, desistindo dos mesmos pouco tempo depois, ao reconhecer que não correspondiam às suas expectativas.

A entrada para o Itamaraty, por meio de concurso para o Instituto Rio Branco, quando foi examinado por Guimarães Rosa, é marcante, assim como os anos em que viveu sozinho no Rio de Janeiro, descobrindo um mundo bastante distinto do que conhecera até então.

Já formado, abandonou o posto na Divisão Política (chamada pelos diplomatas de "cérebro pensante" do Itamaraty) nas belíssimas instalações da instituição no Rio de Janeiro e, contrariando recomendações de pessoas mais experientes, apresentou-se como voluntário para trabalhar em Brasília, destino que ninguém queria. A decisão teve motivação econômica, uma vez que ganharia mais do que o dobro com a transferência, o que lhe permitiria abreviar o tempo para o almejado casamento. Embora já tivesse visitado a cidade ainda na fase de obras, chegou para ficar no dia 10 de março de 1961, cerca de quarenta dias depois da posse de Jânio Quadros. Nessa permanência em Brasília, Ricupero acompanhou de perto a renúncia de Jânio e suas peripécias, contribuiu para a criação de relações culturais com o continente africano e testemunhou as discussões envolvendo a conveniência de dar posse ao vice-presidente João Goulart.

Após casar-se com dona Marisa nos primeiros dias de março de 1961, voltou a Brasília, ao ser confirmado no seu posto por San Tiago Dantas, que ocupou a pasta das Relações Exteriores durante a breve experiência parlamentarista com Tancredo Neves. Com o restabelecimento do presidencialismo após o plebiscito de janeiro de 1963, San Tiago Dantas converteu-se em ministro da Fazenda, "empenhado, ao lado de Celso Furtado, no Planejamento, em salvar a economia do colapso. Durou cinco meses no posto, menos do que os dez meses como chanceler, derrotado pela impaciência por resultados do programa de estabilização e pela oposição de Brizola, líder do que chamava de 'esquerda negativa'".

Antes de prosseguir, vale a pena reproduzir três trechos de Ricupero em que expressa claramente sua admiração por San Tiago Dantas. O primeiro, logo depois de conhecê-lo num jantar promovido por Maury Gurgel Valente:

Foi a impressão mais forte que recebi em toda a minha vida do poder da palavra como pensamento vivo e concreto, da força do verbo que organiza e explica o mundo e a história por meio da luz da razão e da inteligência. San Tiago sabia ouvir, não deixava passar afirmação sem questionar e provar sua veracidade. Falava de maneira pausada, com a pronúncia culta do mais expressivo português que se poderia esperar da língua falada no Brasil.

O segundo, quando já enfermo e afastado da vida pública, San Tiago procurava evitar o golpe de 1964:

Golpe que ele tentou até o fim evitar com as poucas forças que lhe restavam. Empenhou-se junto a Jango para contrabalançar a influência nefasta dos radicais. Aconselhou-o a acalmar as paixões, desencorajando iniciativas que seriam vistas como uma escalada de provocações: o comício de 13 de março na Central do Brasil, a reunião de marinheiros e fuzileiros navais na sede do Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro, o comparecimento ao encontro no Automóvel Clube da Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar em 30 de março.

O terceiro, por fim, logo após o afastamento de João Goulart:

Consumado o golpe, [San Tiago] não desanimou. Recordou-se talvez do papel que tivera em outubro de 1945, ao sugerir aos militares dar posse ao presidente do Supremo Tribunal Federal para substituir o deposto Getúlio, evitando a formação de uma Junta Militar. Sendo outras as circunstâncias, propôs que o Congresso elegesse como presidente transitório o marechal Eurico Gaspar Dutra, ex-presidente, militar de mais alta hierarquia, portanto impossível de recusar. A devoção de Dutra à Constituição de 1946, que ele mesmo promulgara, poderia garantir um retorno rápido à democracia. Enquanto se  processavam as articulações, Juscelino, impaciente em assegurar sua candidatura nas eleições de 1965, teria se precipitado, prometendo ao general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército e da conspiração, que o PSD, o maior partido no Congresso, o apoiaria na escolha indireta para presidente.

Dizem que, ao ouvir a notícia, San Tiago teria exclamado: "Juscelino acaba de entregar o poder aos militares por vinte anos!"

Dando sequência à carreira, Ricupero serviu em Viena (onde recebeu a notícia de que era perseguido e ameaçado de prisão pelos militares no poder), em Buenos Aires e em Quito, locais em que fazia qualquer serviço, dedicando-se basicamente a assuntos culturais, comerciais e outros, na periferia do eixo político e econômico da diplomacia.

Mais tarde, já promovido a ministro de primeira classe e chefiando o Departamento das Américas do Itamaraty, uma reviravolta. Procurado por Francisco Dornelles, recebeu a notícia de que fora convidado a se tornar assessor de política externa na campanha à presidência de Tancredo Neves. Autorizado pelo ministro Saraiva Guerreiro a prestar esse apoio em caráter pessoal, Ricupero recorda que até a eleição indireta realizada em 15 de janeiro de 1985 pouco teve a fazer, a não ser uma ou duas análises de temas da atualidade.

Passada a eleição, foi incluído na pequena comitiva que acompanhou o presidente eleito em viagem pelo mundo. De 24 de janeiro a 7 de fevereiro, a viagem incluiu encontros com o papa João Paulo II, o primeiro-ministro italiano Bettino Craxi na Itália, o presidente François Mitterrand na França, o primeiro-ministro Mário Soares e o presidente Ramalho Eanes, em Portugal, o primeiro-ministro Felipe González e o rei Juan Carlos, na Espanha, o presidente Ronald Reagan, o vice George Bush e o secretário de Estado George Schultz, nos Estados Unidos, o presidente Miguel de la Madrid, no México, o presidente Belaúnde Terry, no Peru, e o presidente Raúl Alfonsín, na Argentina. Reproduzindo hábito de sua mãe, Ricupero registrou dados da viagem numa agenda de capa vermelha que recebera de brinde da Editora Abril. Em 2010, 25 anos mais tarde, esses registros foram publicados no livro Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo Neves (São Paulo: Imprensa Oficial).

Com a morte de Tancredo, Ricupero acompanhou de Brasília os anos iniciais da Nova República até que, em meados de 1987, fracassado o Plano Cruzado, passado o susto da moratória da dívida externa e com os trabalhos da Assembleia Constituinte avançados, pediu para sair do Brasil. Mesmo que inconscientemente, estava preocupado com o futuro do Brasil pós-Constituição, apreensão já expressada pelo jornalista Carlos Castello Branco do Jornal do Brasil.

Neste ponto, vale reproduzir o comentário de Ricupero a respeito de Ulysses Guimarães e da nova Constituição:

Em cerimônia na qual recebeu a Legião de Honra na embaixada da França em Brasília, lembro do discurso espirituoso em que o velho parlamentar prometia seguir o modelo de constituição ideal segundo Napoleão: que fosse curta e vaga! Não preciso dizer que acabou por sair texto interminável e detalhado.

Estavam disponíveis, na época, a embaixada em Paris e os organismos junto às Nações Unidas sediados em Genebra. "Sonho de todo diplomata, na primeira, além das atrações evidentes, o trabalho seria mais fácil e agradável. [...] Preferi tentar Genebra, posto mundanamente menos brilhante, de trabalho intenso, que representava o duplo desafio do desconhecido: o trabalho multilateral e a concentração no GATT".

Esta passagem por Genebra durou três anos e foi muito profícua. Sem maior experiência anterior com negócios comerciais, Ricupero foi rapidamente dominando os principais temas e, ao deixar o posto para assumir a embaixada nos Estados Unidos, encontrava-se como presidente das Partes Contratantes do GATT.

Dois aspectos sobre a estada em Washington. No primeiro, relacionado ao trabalho como diplomata, Ricupero relata o desafio de representar um país em crise:

Com o País paralisado pela crise, não podendo fazer grande coisa junto ao governo americano, aproveitei para dedicar boa parte do tempo a participar ativamente de seminários, discussões, eventos patrocinados pelos think tanks de Washington, capital mundial dessas entidades. Encorajei os funcionários da embaixada a fazerem o mesmo, dentro e fora da capital norte-americana, em várias cidades e universidades dos Estados Unidos. Tornei-me figura habitual desses seminários, de enorme influência na formação da opinião pública.

O segundo refere-se a aspecto não diretamente afeito às atividades diplomáticas, mas que certamente chamará a atenção dos leitores. Já nos derradeiros dias em Washington, Ricupero foi procurado por Ruth Escobar, companheira de adolescência do bando de aspirantes a intelectuais que se encontravam na Biblioteca Municipal Mário de Andrade em São Paulo, com a solicitação para hospedá-la juntamente com a amiga Shirley MacLaine, que iria passar uma semana em Washington para um show com Frank Sinatra, não querendo ficar em hotel para evitar o assédio da imprensa e dos fãs. “Para encurtar a história, Marisa e eu acabamos por acolhê-las e, em razão disso, assistimos ao show de inauguração do Warner Theatre, ao fim do qual fomos convidados por Frank Sinatra para jantar com ele no mais luxuoso restaurante chinês da cidade”.

Nos capítulos seguintes, Ricupero descreve sua passagem pelo Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, a convite de Itamar Franco e, posteriormente, sua transferência para o Ministério da Fazenda, sendo o quinto a ocupar o posto na gestão de Itamar, sucedendo Fernando Henrique Cardoso, obrigado a se desincompatibilizar para concorrer à presidência da República. No exercício do cargo, Ricupero teve papel decisivo no momento chave para o êxito do Plano Real representado pelo lançamento da nova moeda.

Tendo o lançamento do livro coincidido com o aniversário de 30 anos do real, volume considerável de matérias foi divulgado sobre o assunto, dispensando-me de abordá-lo neste artigo. Fica, porém, a recomendação para a leitura atenta do capítulo Algodão entre cristais, em que Ricupero narra episódios interessantíssimos envolvendo a difícil relação entre o presidente Itamar Franco e os integrantes da equipe responsável pela concepção e implementação do Plano Real.

Depois de se referir aos momentos difíceis que se seguiram ao escândalo da parabólica, responsável por sua saída do Ministério da Fazenda, Ricupero detalha, nos capítulos seguintes, a volta às raízes italianas no período em que foi embaixador em Roma e a segunda passagem por Genebra, onde por nove anos exerceu o cargo de secretário-geral da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), entidade instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964, para ser o ponto focal  do Sistema ONU dedicado ao tratamento integrado das questões de comércio e desenvolvimento, e de temas conexos, como finanças, tecnologia, investimentos e empreendedorismo.

Nos capítulos finais, Ricupero relembra alguns bons momentos que teve a oportunidade de experimentar ao longo da vida dedicando-se a clássicos da leitura, da música e das artes em geral, bem como os livros que escreveu e as batalhas políticas de que participou.

Ao fazer um balanço final, Ricupero recorda os altos e baixos que caracterizaram o Brasil durante os 87 anos de sua vida. Afirma que "nas horas sombrias, volta com força a tentação de pôr a culpa em nossa herança cultural e histórica, nas mazelas e fantasmas que herdamos do passado. William Faulkner nos lembra que o passado não morre, nem mesmo é passado, pois não acabou de passar. Ou rimos amargamente com a frase de Millôr Fernandes, 'o Brasil tem um passado enorme pela frente'".

Revelando gratidão pela vida que Deus lhe deu, Ricupero reconhece que

no Ocidente ou no Oriente, não fomos ainda capazes de construir um sistema social e econômico, capitalismo ou socialismo, capaz de superar os desafios principais da humanidade: o aquecimento global, a desigualdade crescente, o desemprego estrutural, a falta de participação e democracia. Resta assim um imenso, talvez utópico, programa de trabalho para preencher as próximas décadas com obras de construção e paz, não de destruição e guerra.

Desejando que seu livro Memórias seja lido com o olhar no futuro e não no passado conclui:

Não vou nem tentar adivinhar o que nos reservam em mudança os anos futuros, pois é inútil. Com todos os avanços da inteligência artificial e da computação, Deus, se quiser, ainda pode desfazer os planos das nações e reduzir a pó os projetos dos povos. Só posso esperar que o futuro seja melhor que o presente, que o amanhã nos traga tempos melhores que os de ontem. Defronte a ameaças antigas e novas, da volta do flagelo da guerra e da peste, do risco de divisão do mundo e de nova guerra fria, espero que a paz, a razão e o entendimento acabem por prevalecer.

Tendo tido o privilégio de conviver por mais de dez anos com Rubens Ricupero na direção da Faculdade de Economia da FAAP, confesso que a leitura de Memórias me permitiu conhecer novas facetas da vida do embaixador e de reviver histórias que me foram relatadas por esse grande protagonista que, como observado no comentário feito pela Escola de Repertório, "literalmente assinou parte da história do Brasil: sua assinatura estampou as primeiras cédulas do real, um marco na economia do País que, até então, vivia às voltas com a hiperinflação e planos econômicos frágeis".

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

       

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IA, o requinte supremo

Escritor e jurista José Paulo Cavalcanti conta sua primeira experiência com as ferramentas de Inteligência Artificial

José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, jurista e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum “Escrever é o requinte supremo”, escolhi essa frase de Pessoa (Soares, no Desassossego) para falar da tal Inteligência Artificial ‒ IA. E já peço perdão, amigo leitor, para dizer que nasci analógico. Acontece com a humanidade inteira. Diferente de quase todos é que continuei a ser, com poucas alterações, desde que me entendi por gente. Com o amigo Carlos Drummond de Andrade (confessa bem no início de seu Poema de sete faces, aquele do “Mundo, mundo, vasto mundo”), aconteceu algo parecido Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai Carlos, ser gauche na vida. E assim passamos, por nossos caminhos ‒ um analógico, o outro gauche. Creio até que é como que vou morrer; nem tão cedo, espero. Outro dia perguntei à neta Luiza, então com 9 anos, qualquer coisa ligada ao computador. E seu olhar, ao responder, correspondeu a um “como pode um velho ser tão analfabeto?”. Com muito custo, e penosamente, vou aprendendo algumas novidades, e cada uma delas corresponde a um espanto. Última foi a Inteligência Artificial. Dia desses, quis fazer teste para conferir se sabia mesmo escrever. Pedi colaboração de Silvio Meira, gênio. E o resultado, para mim, foi susto do tamanho de um bonde (até desconfio que a meninada de hoje nunca ouviu essa expressão antiga). Primeiro quis saber se IA seria capaz de escrever poema no estilo de um escritor estrangeiro. Escolhi Flaubert, por muito gostar dele. Para definir o tema, pensei em seu romance mais famoso, Madame Bovary. Nele, Flaubert conta uma história real ocorrida, na França, em 1840. A aldeia normanda de Ry, que o autor conhecia bem, passa na literatura ser a de Yonville. O médico Delamare assume o rosto do marido, Charles Bovary. A bela e sonhadora Louise Colet se transforma em Emma, Madame Bovary. Na vida real ela se apaixona por um fazendeiro, Campon; enquanto, no romance, primeiro por Rodolphe, em seguida também pelo jovem Leon. Mais tarde, o desespero e o suicídio. Depois Flaubert diria “Madame Bovary sou eu”, mas essa é outra história. Para dificultar a missão de IA, pedi escrevesse um poema juntando os conceitos de amor, arrependimento e morte. Não demorou 2 segundos e editou, num francês castiço e rimado, belo poema que encerra dizendo Enfin, l'étreinte De la fin et du début Amour et mort Éternel súplice. E, ainda, uma explicação (resumo): “A voz poética ainda reflete sobre o amor não vivido plenamente, o arrependimento (ou a falta dele) diante da morte iminente, e a ironia de compreender o valor do amor apenas no final da vida. O tom melancólico e reflexivo foi preservado, mesmo que de forma mais concisa”. Em seguida, sobre os mesmos temas de amor, arrependimento e morte, pedi escolhesse um heterônimo de Fernando Pessoa. E IA (resumo) “Para esta tarefa, escolherei o heterônimo Álvaro de Campos, conhecido por sua poesia modernista, repleta de emoções intensas, angústia existencial e um estilo frequentemente livre e dinâmico”. Mesmo que eu teria escolhido. E escreveu, efetivamente, um longo texto no seu estilo, que diz no fim Que a morte venha, então, não como punição, mas como epílogo De uma vida vivida em fragmentos, em hesitações. Talvez no último suspiro eu encontre a coragem Que me faltou em todas as batidas aceleradas do coração. Como complemento, outra explicação (resumo): “O poema explora os temas solicitados ‒ amor, arrependimento e morte ‒ através da lente característica deste heterônimo, mesclando reflexão filosófica com angústia pessoal”. Assustado com tanta erudição, lembrei definição do próprio Álvaro de Campos (sem título, sem data), “minha inteligência” (artificial, talvez) “tornou-se um coração cheio de pavor”. Pensando no Brasil, lembrei do conhecido soneto Versos íntimos, do enorme Augusto dos Anjos, aquele que acaba dizendo Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! E pedi, a IA, um soneto, como os dele, sobre esse tema, Beijos. Para comparar o estilo dos dois, Augusto e IA. Primeiro, uma explicação (resumo): “Este soneto tenta emular o estilo característico de Augusto dos Anjos, incorporando: 1. Vocabulário científico e mórbido... 2. Imagens de decomposição... 3. Contraste entre o prazer físico da vida e a realidade da morte... 6. Tom melancólico e mórbido, típico de sua poesia” E depois, com título e tudo, veio Ósculo Pútrido. Beijos, eflúvios de lascívia e podre, Trocados outrora em lábios palpitantes, Agora são bactérias devorantes No imo da cova onde o verme me rodre. Quisera eu que o Cosmos os engodre, Esses beijos, micróbios flamejantes, Que em vida foram êxtases constantes E hoje são pus que na entranha se modre. Na língua inerte, onde outrora a saliva Misturava-se em férvida luxúria, Hoje pulula a larva corrosiva. Ó beijo! Efêmero prazer da carne viva, Transmutado em putrescente incúria, És da Morte a gargalhada altiva! Como Augusto, IA usou palavras incomuns, entre elas “imo (o que está no mais fundo). E, curioso, até inventadas (rodre, engodre, modre). Perguntei a Alexei Bueno, maior especialista em Augusto, se era um recurso usado pelo mestre paraibano, e ele confirmou que não. Razão pela qual, nesta sagração de esperteza, IA já começa por exibir um estilo meio brasileiro. Para encerrar, e num surto de megalomania, pedi a IA uma crônica no meu próprio estilo. Certo de que diria qualquer coisa como “Desculpe, não sei quem é”. Ou “Peça escritor mais conhecido”. Que nada, caro leitor. Primeiro, novamente, explicação (resumo): “Esta crônica busca capturar alguns elementos do estilo de José Paulo Cavalcanti Filho: “1. Observação do cotidiano com um olhar reflexivo. 2. Uso de um objeto ou evento aparentemente banal como ponto de partida para reflexões mais profundas. 3. Linguagem clara e direta, mas com toques poéticos. 4. Conclusão que convida à reflexão, sem ser didática. 5. Mistura de narrativa pessoal com considerações mais amplas sobre a condição humana. O tema escolhido ‒ nossa relação com o tempo ‒ é algo que Cavalcanti Filho poderia abordar, explorando como pequenos eventos podem nos levar a questionar hábitos e valores arraigados”. E assim nasceu esse texto da IA, “O Relógio Parado.” “Naquela manhã de domingo, acordei com a estranha sensação de que algo estava diferente. O silêncio era mais denso, quase palpável. Fui até a sala e lá estava ele, o velho relógio de parede, imóvel. Presente de meu avô, aquele relógio marcara o compasso de nossas vidas por décadas. Seu tique-taque era a trilha sonora de nossas reflexões, discussões e silêncios. Agora, sem aviso, decidira parar. Tentei dar corda, ajustar os ponteiros. Nada. Pensei em chamar um técnico, mas hesitei. Talvez fosse um sinal. Quem sabe o velho relógio, em sua sabedoria mecânica, decidiu que era hora de nos ensinar algo sobre o tempo? Naquela semana, percebi como vivíamos escravizados pelos minutos. O café da manhã apressado, o trânsito frenético, as reuniões cronometradas. Sem o relógio, redescobrimos o prazer das conversas sem pressa, das refeições saboreadas, do ócio criativo. O técnico veio na sexta-feira. É simples, disse ele, só precisa de uma peça nova. Agradeci, mas não deixei que consertasse. O relógio continuaria parado, não por defeito, mas por escolha. Às vezes, é preciso que o tempo pare para que possamos, enfim, vivê-lo”. É muito, para mim. No princípio dos tempos o homem aprendeu a se comunicar com desenhos nas cavernas usando sangue, tintas rudimentares feitas de barro ou plantas, tudo só com as mãos. Depois vieram gravetos na areia, penas, tintas, papiros e papéis, com a escrita. Em seguida, lápis e canetas, máquinas de escrever, computadores. Um aposentado o outro, que o antecedia. O risco é que algum dia, talvez muito em breve, a IA acabe tornando mãos, gravetos, tintas, papéis, lápis, canetas, máquinas de escrever, computadores e os próprios homens, obsoletos. Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.  

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Um panorama de 40 anos de eleições municipais no Brasil

Este ano superaremos a marca dos 150 milhões de eleitores aptos a votar, espalhados por 5.568 cidades, aponta o cientista político Rogério Schmitt

Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático Edição Scriptum Em outubro de 2024, o Brasil realizará novamente eleições para prefeitos e vereadores em todas as cidades do País. E esta será a décima-primeira rodada de eleições locais desde a redemocratização. Achei que seria conveniente e oportuno fazer uma retrospectiva do caminho que percorremos ao longo destes quase 40 anos. As primeiras eleições municipais realizadas após o fim do regime autoritário ocorreram em 15 de novembro de 1985, no fim do primeiro ano da presidência de José Sarney. Este foi um pleito bem diferente daqueles que viriam depois. Por um lado, ele serviu apenas para eleger prefeitos, e para um mandato abreviado de três anos. Por outro lado, a votação popular ocorreu somente nas capitais dos Estados, nas cidades localizadas nos antigos territórios federais e, finalmente, naqueles municípios anteriormente classificados como “zonas de segurança nacional” ou “estâncias hidrominerais”. Neste grupo de 201 cidades, nas quais residiam cerca de 18 milhões de eleitores, a eleição direta dos prefeitos havia sido proibida pela ditadura, porém restabelecida logo após a redemocratização do País. Quatro anos depois, novamente no feriado nacional de 15 de novembro de 1988, ocorreu a segunda rodada de eleições municipais sob o governo de José Sarney. A nova Constituição havia sido promulgada em outubro, mas não houve antecedência suficiente para que fossem implementadas naquele mesmo ano as importantes mudanças aprovadas para o processo eleitoral brasileiro. A grande novidade daquele ciclo eleitoral foi o fato de que, pela primeira vez, estavam sendo renovados simultaneamente os prefeitos e vereadores de TODOS os municípios do País (exceto Brasília), para mandatos coincidentes de quatro anos, com quase 76 milhões de eleitores aptos a votar. Esta coincidência das eleições locais em todas as cidades brasileiras nunca mais foi alterada. A terceira rodada de eleições municipais ocorreu em outubro de 1992, logo no início do governo Itamar Franco (que assumira há poucos dias a presidência, após o impeachment de Fernando Collor). Naquele ano, mais de 90 milhões de brasileiros estavam aptos a votar. E esse foi o primeiro pleito municipal onde passaram a vigorar as boas novidades trazidas pela Constituição de 1988. A primeira delas foi a instituição do voto facultativo para jovens de 16 e 17 anos. A segunda foi a criação do sistema de dois turnos para a eleição de prefeitos nas cidades com mais de 200 mil eleitores. E a terceira mudança foi a alteração da data das eleições, com o primeiro turno ocorrendo sempre no primeiro domingo de outubro, e o segundo turno (onde necessário) sempre no último domingo. Quatro anos depois, em 1996, o Brasil já vivia o governo Fernando Henrique Cardoso. O primeiro turno das eleições municipais seria realizado em 6/10/96, e o segundo em 27/10/96. Esse foi o primeiro pleito local no qual o eleitorado brasileiro superaria a marca dos 100 milhões de eleitores (para ser preciso, éramos 101 milhões de pessoas aptas a votar). Naquele ano, em caráter experimental, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também inaugurava o sistema de votação por urnas eletrônicas, testado com sucesso em um total de 57 cidades (as capitais dos Estados e os municípios com mais de 200 mil eleitores), as quais abrangiam cerca de 32 milhões de eleitores. Já no segundo mandato de FHC, as eleições do ano 2000 (realizadas em 1º e 29 de outubro, respectivamente) seriam as últimas com o registro de mudanças significativas no processo eleitoral. Pela primeira vez, TODOS os eleitores brasileiros utilizaram as urnas eletrônicas para votar. Naquele ano, o eleitorado feminino também superaria o masculino (um predomínio mantido até os dias de hoje). Finalmente, aquela foi também a primeira eleição em que os prefeitos em exercício ganharam o direito de concorrer à própria reeleição. Para registro, o eleitorado brasileiro atingiu em 2000 a marca de 115 milhões de pessoas. Ao longo das eleições municipais ocorridas durante os governos petistas houve uma notável estabilidade do calendário e das demais regras eleitorais. Vale registrar apenas a manutenção da tendência de crescimento contínuo do eleitorado brasileiro: 121,2 milhões em 2004 (Lula I), 130,5 milhões em 2008 (Lula II) e 138,5 milhões em 2012 (Dilma I). Já em 2016, pela segunda vez na história recente, as eleições municipais seriam realizadas logo após um impeachment presidencial (substituição de Dilma Rousseff por Michel Temer). E o número de eleitores aptos a votar aumentaria ainda mais, atingindo a marca de 144,1 milhões de pessoas. A rodada mais recente dos pleitos municipais aconteceu em 2020, o ano da eclosão da pandemia do coronavírus. Por conta da vigência das medidas sanitárias de isolamento social, foi necessária – em caráter excepcional – a alteração da data das eleições para prefeitos e vereadores. O primeiro turno ocorreria em 15 de novembro e o segundo apenas duas semanas depois, no dia 29. E houve ainda uma novidade importante no sistema eleitoral: a partir daquele ano, ficaram proibidas as coligações partidárias em eleições proporcionais (no caso específico, nas eleições para vereador). Por sua vez, o número de eleitores aptos a votar atingiu o patamar de 147,9 milhões de brasileiros. E chegamos a 2024. Neste ano, o calendário eleitoral municipal está retornando para o mês de outubro, com o primeiro turno previsto para 6 de outubro e o segundo para 27 de outubro. Certamente superaremos a marca dos 150 milhões de eleitores aptos a votar, espalhados por 5.568 cidades. Como diz a velha máxima: “toda a política é local”. E que venham mais 40 anos de democracia! Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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