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Taxonomy - A recuperação do ideal democratico

3. Significado e pertinência da visão de Tocqueville

No tempo de Tocqueville não havia pessoas ricas e certamente não aprovaria o estilo de vida dos atuais. Considera que grande número deles basicamente ocupa-se de criar, para si próprios, condições especiais de vida, desinteressando-se do que é público.

A mensagem de Tocqueville calaria fundo na consciência da elite política européia,  criando condições para que marchasse ao encontro da aspiração cada vez mais difundida em favor do sufrágio universal. Conquistado este para a população masculina --que era a aspiração da época--, no século XX ocorreria sua extensão às mulheres. O resultado não significou, obviamente, o desaparecimento das mazelas no mundo da política. Contudo, no Ocidente pode-se afirmar que a experiência histórica comprovaria os equívocos da pregação de Rousseau, baseada na suposição ilusória de que o homem  poderia ultrapassar as próprias limitações para tornar-ser um ser moral.  A consolidação de regimes democráticos, na sua maior parte,  generalizaria a praxe da negociação dos inevitáveis conflitos sociais, abandonando-se o recurso às armas, o que não quer dizer que não apresente defeitos, sendo merecidas muitas das críticas que lhe são dirigidas, questão na qual nos deteremos oportunamente. No que respeita especificamente ao texto de Tocqueville, vale registrar o balanço empreendido no transcurso do seus 150 anos (1985). Temos em vista que então publicou, na revista Times, o  conhecido estudioso da política Paul Gray. Ao colocar-se na pele de Tocqueville, destaca que, em 1835, os Estados Unidos tinham apenas 50 anos como nação independente; população de 13 milhões, tendo aumentado para 240 milhões. O número de estados passou de 24 para 50. No mesmo período emerge o poder do automóvel e da televisão. Tudo isto acarretaria, segundo Gray, algumas alterações não previstas por Tocqueville, o que o faria reorientar o sentido de sua crítica. No tempo de Tocqueville não havia pessoas ricas e certamente não aprovaria o estilo de vida dos atuais. Considera que grande número deles basicamente ocupa-se de criar, para si próprios, condições especiais de vida, desinteressando-se do que é público. Contudo, verificaria com satisfação que o sistema consegue manter escolas e outros serviços públicos de excelente padrão. No que respeita aos negros, previra o choque inevitável que ocorreria entre o Sul e o Norte e que, a escravidão, como instituição não poderia durar. Escreveria, então: “sejam quais forem os esforços dos sulistas para conservar a escravidão, não o conseguirão para sempre. A escravidão, encerrada num só ponto do globo, atacada como injusta pelo cristianismo, como funesta pela economia política, em meio à liberdade democrática e às luzes de nossa época, não é de forma alguma uma instituição que possa durar.” Reconheceria que a situação evoluiu numa direção em que muitas coisas de positivo seria apontada. Negros encontram-se em posição de autoridade e proeminência. Artistas dessa origem gozam de franca preferência do público. Contudo, viria situações de intolerância e injustiça, a exemplo da concentração de contingentes negros em partes decadentes de grandes centros urbanas, onde se tornam corriqueiras cenas de violência e é grande a incidência de criminalidade. No que respeita entretanto ao maior temor de Tocqueville, que se cifrava na onipotência e tirania da maioria, Gray observa que ficaria muito surpreso de deparar-se com a grande capacidade de fazer ruído e impressionar a opinião que muitas minorias vieram a conquistar. Enfim, Gray conclui que Tocqueville, aplaudindo entusiasticamente o sentido da evolução da democracia americana, não deixaria que isto sufocasse o seu espírito crítico. Assim, repetiria o que escreveu há 150 anos: “Os homens não ouvirão a verdade de seus inimigos. Esta lhes será oferecida, muito raramente, pelos próprios amigos”. Poder-se-ia portanto afirmar que o sistema democrático representativo, sem violentar a natureza humana, tornar-se-ia a mais importante criação da humanidade, no que respeita à convivência social.

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2. Ideia sumária de A democracia na América

O livro busca demonstrar que a distribuição da propriedade nos EUA proporcionou-lhes uma base social democrática, isto é, não promoveu a concentração de riqueza mas sua distribuição.

Tocqueville adverte desde logo que não se propõe recomendar a cópia servil das instituições vigentes nos Estados Unidos mas contribuir “para melhor compreender o que nos convém; menos para buscar exemplos do que ensinamentos; antes para tomar-lhe emprestados os princípios que os detalhes de suas leis.” Sua exposição busca demonstrar que a distribuição da propriedade (predominantemente agrícola, àquele tempo) proporcionou-lhes uma base social democrática, isto é, não promoveu a concentração de riqueza mas sua distribuição. Preocupa-se em descrever o que aconteceu nos estados antes de falar do governo da União. Enfatiza sobretudo a descentralização administrativa e acentua a importância do Judiciário. Semelhante grau de detalhamento adota na apresentação da Constituição e funcionamento da Presidência da Republica. Ressalta a importância da Suprema Corte entre os poderes da República do mesmo modo que a do sistema federal. Toda a segunda parte de A democracia na América está dedicada a comprovar que nos Estados Unidos é o povo que governa. Ao faze-lo, não obscurece os problemas daí decorrentes em especial o que denomina de risco da tirania da maioria. Chama a atenção para a influência da religião no comportamento social dos americanos. Afirma que a convivência entre as raças apresenta enormes desafios sobretudo em decorrência da existência da escravidão. Tocqueville enfrenta diretamente a questão do porvenir da democracia americana, detendo-se ainda no que favorece a grandeza comercial dos Estados Unidos. Na conclusão, Tocqueville ocupa-se do lugar que os ingleses ocupam no curso histórico do Ocidente. Compara a modernidade com a Idade Média --época do fracionamento-- porquanto  tipifica-se por vivenciar uma fase de aproximações. Desse ângulo, avança uma premunição deveras brilhante, na medida em que viria a verificar-se em pleno século XX. Escreve: “há hoje na terra dois grandes povos que partindo de  pontos diferentes parecem avançar rumo ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos. O ponto de partida de ambos é diferente; diversos são os seus caminhos. No entanto, cada um deles parece chamado, por um destino da Providência, a tomar em suas mãos a metade do mundo.” Raymond Aron destaca o trecho adiante de A democracia na América como expressivo do entendimento de Tocqueville do  que seria o regime democrático: “Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para atender às necessidades da vida material, empregando-a na produção do bem estar; se a razão vos parece mais útil aos homens do que o gênio; se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas mas hábitos tranqüilos; se tendes preferência por ver vícios em vez de crimes, e se preferir encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações hediondas; se em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma sociedade próspera; se, por fim, o objetivo principal do governo não é, segundo vossa opinião, dar a maior força ou a maior glória possível a todo o corpo da nação, mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem o maior bem estar, resguardando-o da miséria, neste caso deveis igualar as condições para constituir o governo democrático. Se não há mais tempo de fazer uma escolha, e uma força superior à dos homens vos arrasta, sem consultar vossos desejos, a um dos dois tipos de governo, procurai, pelo menos, extrair dele todo o bem de que é capaz, conhecendo seus bons instintos, e também suas más inclinações, esforçai-vos por promover os primeiros e restringir estas últimas.” Do texto citado, Aron extrai a seguinte definição de democracia: “é a sociedade onde não subsistem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais, o que não significa que sejam intelectualmente iguais, o que é absurdo. Ou economicamente iguais, o que, para Tocqueville, é impossível.”    

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1. A circunstância da recuperação do ideal democrático

A obra de Tocqueville e a complementação do processo de universalização do sufrágio permitiram que se estabelecesse a diferenciação entre democratismo e  a democratização conduzida com espírito liberal, o que levou à sucessiva adoção do sistema constitucional de governo nos países da Europa Ocidental, com os percalços vivenciados ao longo do século XX.

Em 1835 apareceu, na França, um livro intitulado A democracia na Europa. Ainda que, nessa década, o país iniciasse uma experiência de prática do constitucionalismo, campeava na Europa a resistência dos governos a esse sistema que, até então, no conjunto dos países da Europa Ocidental, vigorava apenas na Inglaterra. Embora não se tratasse de sistema democrático, correspondia a substancial ampliação dos grupos sociais (proprietários) a ter acesso ao poder. O entendimento geral era de que a democracia seria sinônimo de anarquia e desordem. Deste modo, o livro em apreço contrariava frontalmente o consenso vigente no seio da elite. Cabe assim, começarmos pela personalidade do autor, esclarecendo a circunstância que lhe proporcionara o contato com o fenômeno considerado. O autor de A democracia na América seria Aléxis de Tocqueville (1805/1859). De família francesa tradicional, concluiu a Faculdade de Direito de Paris em 1825. Fez, durante 1826 e 1827, uma viagem de estudos à Itália. Ingressou na Magistratura, como Juiz Auditor em Versalhes, onde seu pai era prefeito. Vivia-se o período da restauração, subseqüente à queda de Napoleão. Em julho de 1830, ocorre a Revolução Liberal, iniciando-se a monarquia constitucional de Luís Felipe. Tocqueville guardará certa distância em relação a esse regime que dura, consoante foi referido, até 1848, no qual os liberais doutrinários exercem grande influência. No ano seguinte, juntamente com a seu amigo Gustave de Beaumont, obtém permissão para estudar o sistema penitenciário norte-americano. Nessa viagem de estudos, os dois permanecem nos Estados Unidos de maio de 1831 a fevereiro de 1832. Dariam conta do trabalho realizado na obra Du systeme pènitenciaire aux États-Unis et de son application em France, aparecido em 1833. Beaumnont e Tocqueville apresentam os seguintes títulos: advogados da Corte Real de Paris e membros da Sociedade Histórica da Pensilvânia. Com a publicação autônoma dois anos depois (1835), Tocqueville demonstraria que o sistema político implantado e em funcionamento nos Estados Unidos o impressionara vivamente. Seu livro iria demonstrar o extraordinário volume da documentação mobilizada para efetivar a sua caracterização. Desde logo, a obra provocou uma grande curiosidade entre estudiosos de diversos países. Em função do livro, Tocqueville visitará Inglaterra, Irlanda e Suíça, entrando em contato com diversas personalidades desses países, com os quais manterá  a partir de então animada correspondência, como é o caso de John Stuart Mill. Graças ao relacionamento com este último, publica, em 1836, na London and Westminister Review, o artigo intitulado “L´État social et politique de la France avant e depuis 1789”, que mereceria enorme acolhida pela novidade ali contida, no que respeita à Revolução Francesa, que apresenta como parte do processo de centralização do Estado francês. Em 1838, torna-se membro da Academie des Sciences Morales et Politiques e, em seguida, da Academie Française. Acalentando certa esperança na mudança de regime que a Revolução de 1848 iria provocar, participou, como deputado integrante da Assembléia Constituinte, sendo Ministro dos Negócios estrangeiros (1849), afastando-se à vista dos rumos seguidos depois do golpe promovido por Luís Bonaparte, antes caracterizado. Nos anos que lhe restauram na década de cinqüenta, ocupou-se de documentar a tese inovadora sobre a Revolução Francesa. Ao falecer (1859) tinha 54 anos de idade. A obra de Tocqueville e a complementação do processo de universalização do sufrágio, empreendida por Gladstone na Inglaterra --antes caracterizado--, na parte final do século XIX, permitiram que se estabelecesse, nitidamente, a diferenciação entre democratismo e  a democratização conduzida com espírito liberal, o que levou à sucessiva adoção do sistema constitucional de governo nos países da Europa Ocidental, com os percalços vivenciados ao longo do século XX.

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