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Taxonomy - Governo Representativo

8. O método inglês de extensão do sufrágio e seus méritos

Acreditamos que o conjunto das breves notas precedentes sobre a experiência inglesa de constituição das instituições do governo representativo permita compreender as razões pelas quais as nações que a tiveram presente lograram estruturá-las de forma estável, livres de golpes de Estado e surtos autoritários.

Ao consagrado cientista político norte-americano, Robert Dahl (1915/2014), recentemente falecido às vésperas de tornar-se centenário, ocorreu elaborar gráfico expressivo da maneira cautelosa e prudente como se procedeu à extensão do sufrágio na Inglaterra. Antes de mais nada, não se deve perder de vista que, no século XIX, tratava-se de alcançar o sufrágio universal masculino, já que as mulheres achavam-se privadas do direito de voto, questão que somente viria a ser considerada após a Primeira Guerra. Assim, tomando-se por base apenas o século XIX, os percentuais da população acima de vinte anos de idade com direito a voto evoluiu deste modo: 1831, 4,4%; 1832, 7,1%; 1864, 9%; 1883, 18%; 1886, 28,5%. A última reforma do século eliminou a prova de renda e dividiu o país em distritos aproximadamente equivalentes em termos populacionais, elegendo um deputado cada. Alcançava-se o sufrágio universal masculino. Nas eleições de 1914, o eleitorado equivale a 30% do grupo populacional indicado. O sufrágio feminino somente se completaria em 1930, quando o percentual em causa chega a 97%. Ainda no século XIX, na França, viria a ser comprovada a hipótese de que a extensão do sufrágio poderia ser utilizado para favorecer governo pessoal do Monarca. O futuro Napoleão III (1808/1873), beneficiando-se do sufrágio universal, então adotado,  elegeu-se (1851) Presidente da República por voto direto e mediante plebiscito (1852) obteve apoio para a sua transformação em Imperador com poderes absolutos. Em contrapartida, na Inglaterra, antes de proceder-se à incorporação ao eleitorado de grupos sociais que não tinham a condição de proprietários (classe que detinha o monopólio da representação), cuidou-se da universalização do ensino fundamental, tarefa que se tornaria muito complexa dado o fato de que as igrejas reformadas é que se ocupavam dessa prática. Assim, foi necessário, primeiro, unificar o tipo de ensino religioso a ser ministrado e, paralelamente, impor a formação do professorado de forma a permitir que, sem maiores percalços fosse o respectivo nível de ensino tornado público. O procedimento em questão estendeu-se ao longo de algumas décadas, coroando-se, por fim, no dispositivo governamental denominado Elementary Education Act, promulgado em 1870. Assinale-se ainda que o ensino fundamental consistia no que se consagraria como a formação para o exercício da cidadania. Vale dizer, além da obrigatoriedade do ensino da língua, da matemática e das principais formas de aproximação à realidade – isto é, não apenas as ciências mas a filosofia, as artes, a religião, o civismo, etc. – os alunos deveriam ser instruídos quanto ao papel das instituições concebidas para proporcionar segurança e comodidade à vida coletiva bem como das organizações governamentais. Deve-se a tal circunstância o fato de que, nas Constituições (inclusive nas brasileiras) o ensino não se reduza ao aprendizado de uma profissão, mas à cultura geral e à mencionada formação para o exercício da cidadania. Acreditamos que o conjunto das breves notas precedentes sobre a experiência inglesa de constituição das instituições do governo representativo permita compreender as razões pelas quais as nações que a tiveram presente lograram estruturá-las de forma estável, livres de golpes de Estado e surtos autoritários.

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7. O que evidencia a recusa inglesa da proposta do cartismo 

A Inglaterra resistiu, mas promoveu em 1867 uma reforma eleitoral que excluía a exigência de renda para dar direito ao voto.

       Ao considerar a questão da democratização do sufrágio, torna-se relevante registrar  a recusa dos ingleses da proposta concreta do que se convencionou denominar de “movimento cartista”, ao tempo em que levou a cabo as diversas reformas ali constantes.

       Denominou-se movimento cartista a campanha promovida, na Inglaterra, por políticos e pensadores que se consideravam radicais, estruturado em torno da Carta das Liberdades do Povo, com amplo apoio popular, nos anos quarenta do século XIX, acabando por declinar na década seguinte. Abrangia cinco pontos: 1) sufrágio universal; 2) voto secreto; 3) eleições anuais; 4) supressão da exigência de renda; e, 5) remuneração aos deputados. Seria recebida com desdém e desprezo no seio do Parlamento sem embargo de que mais adiante tais alterações no processo eleitoral foram aprovadas. A começar do voto secreto, incluído entre as reformas dos anos sessenta.

     Adotou-se forma engenhosa para incorporar ao processo camadas sociais não proprietárias. Em 1967, o Parlamento dispensou da prova de renda aos chefes de família residentes em Londres, providência estendida a todo o país logo a seguir.

      Em face desse comportamento, configura-se situação paradoxal porém muito expressiva porquanto a recusa explica-se em face de sua origem e da doutrina que a fundamenta. As proposições do cartismo achavam-se associadas a uma tradição cultural formada no Continente, provinda da Revolução Francesa e nas idealizações acerca da pessoa humana postas em circulação por Jean-Jacques Rousseau (1712/1778) – cuja doutrina será abordada oportunamente. A liderança política inglesa formara-se na base da experimentação histórica concreta. Não podia aceitar o que lhes parecia simples abstrações, inteiramente dissociadas do processo real.

       Tinha consciência de que, longe de ser composta por essas criaturas idealizadas, a sociedade subdividia-se em grupos de interesses muito concretos, mais das vezes de difícil conciliação. Além disto, a constituição do governo representativo louvara-se de dura e cruenta experimentação. Nesse contexto, não levou a sério as proposições do cartismo. Mas, para assegurar a representatividade do sistema, o Parlamento inglês empreendeu a reforma do sistema eleitoral. Capitaneou-a William Gladstone (1809/1898), como líder do Partido Liberal e Primeiro Ministro nos períodos 1868/1874;  1880/1886 e 1892/1894.

     A fórmula adotada para incorporar ao processo eleitoral grupos sociais que não atendiam à condição de proprietários, aprovada em 1867, consistia em dispensar da prova de renda todos os chefes de família residentes em Londres, providência que seria estendida a todo o país, logo a seguir. Se atendiam às  necessidades de suas famílias, porque privá-los do direito de fazer-se representar no Parlamento?

    A premissa fundamental que adota ao argumentar em defesa da providência consiste em enfatizar que a extensão do sufrágio não visa atender a interesse partidário mas à tradição que consagrara os méritos da experiência inglesa. Acrescenta que, se a associarmos  “à ideia de que se trata da classe média, forçoso é reconhecer que ninguém pode atrever-se a atribuir-lhe inépcia para o exercício de tal direito, partindo de considerações abstratas.”

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6. Significado da Reforma Eleitoral inglesa de 1832

A Reforma Eleitoral de 1832 cria um Parlamento mais aberto às reformas econômicas e o eleitorado se expande. O direito de representar-se ainda é baixo.

      Na experiência isolada de constituição do governo representativo, que tinha lugar na Inglaterra, como vimos, tornou-se uma questão chave estabelecer quem devia dispor da prerrogativa de representar-se no Parlamento. Estabeleceu-se que somente as pessoas que possuíam propriedade disporiam desse direito. O argumento utilizado para sustentar essa tese seria o de que, não tendo interesses para defender as pessoas desprovidas de propriedade acabariam servindo de massa de manobra do Monarca. Tenha-se presente que, mesmo quando não havia outras razões para disputas, as relações entre o Parlamento e o Monarca inseriam um grande potencial de conflito, na medida em que o Parlamento fixava impostos, podendo tal regra ser violada desde que se configurassem situações excepcionais. Tal dispositivo era chamado de prerrogativa. Durante o século XVIII  este último princípio diferenciava os tories (conservadores) dos whigs (liberais). Estes absolutamente contrários.

      Assim, mesmo depois da Revolução Gloriosa (fins de 1688/começos de 1689), isto é, ao longo do século XVIII, os reis tratavam de  dispor de espécie de aliados incondicionais no Parlamento. Na busca de fortalecimento da instituição, William Pitt identificaria a base desse núcleo e chegou mesmo a quantificá-lo. Tratava-se de localidades com reduzido número de eleitores não obstante o que preservavam representação parlamentar. Chegavam a 17. Haveria ainda 34 outros cujo contingente poderia ser ampliado, agregando-se novas circunscrições (34), o que elevava o total a 71, mais de 10% da Câmara Baixa (600 cadeiras). Pitt desenvolveria intensa campanha contra esse grupo, batizando-o de “burgos podres”. E ainda que não haja conseguido aprovar reforma eleitoral que os eliminasse, virtualmente impossibilitou-os de atuar.

        Essa questão seria postergada durante as três primeiras décadas do século XIX, justamente no ciclo em que se operavam grandes transformações demográficas na Inglaterra em decorrência da Revolução Industrial. Surgiam cidades novas e novos centros econômicos. Emergia um novo grupo social, integrado por proprietários, não obstante o que achavam-se privados da representação parlamentar, privilégio dessa classe. Tão profundas transformações sociais não poderiam deixar de refletirem-se no Parlamento. E, deste modo, criam-se condições para a efetivação da reforma sonhada por Pitt. Aprova-se a Reforma Eleitoral de 1832.

       A representação de circunscrições com menos de 2 mil habitantes foi eliminada, reduzindo-se para um único deputado a dos condados que não passassem de 4 mil habitantes. Nada menos que 43 cidades adquirem o direito de representação no Parlamento. A exigência de renda é mantida, de modo que permanece inalterado o princípio do monopólio da representação pela classe proprietária. Ainda assim, corresponde a uma alteração substancial, tornando o Parlamento mais aberto às reformas econômicas levadas a cabo nos decênios seguintes e que fizeram da Inglaterra o país mais poderoso do mundo. O eleitorado expandiu-se de 220 mil para 670 mil. Nos meados do século o país registrava 27,5 milhões de habitantes. O direito de representar-se passava de 4,4% a 7,1% da população acima de 20 anos. Estávamos longe do que se denominou de democratização do sufrágio.

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5. A versão do governo representativo popularizada na Europa

Linha básica consiste no fortalecimento da autonomia do Parlamento, que se fazia acompanhar do apoio e prestígio granjeados no seio da opinião pública inglesa.

         Ao longo do século XVIII consolidou-se, na Inglaterra, o que poderíamos denominar de  primeiro modelo de governo representativo justamente o que seria tomado por base para o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional no continente. Esse processo coincide com a iniciativa de noticiar, na França, a sua existência,  permitindo que se estabelecesse a necessária distinção entre essa nova forma de governo e as iniciativas adotadas no curso da Revolução Francesa.

         A linha básica seguida pelo aludido processo de consolidação do governo representativo consiste no fortalecimento da autonomia do Parlamento, que se fazia acompanhar do apoio e prestígio granjeados no seio da opinião pública inglesa. A novidade introduzida nesse arranjo institucional decorreria de uma circunstância fortuita: o fato de que, para cumprimento do dispositivo constitucional que impedia fosse o trono ocupado por católico, chegassem ao poder reis alemães (notadamente os dois primeiros, Jorge I e Jorge II, reinados de 1714 a 1760). Criaram  figura destinada a servir de intermediário na sua relação com o Parlamento. Como o Conselho de Ministros reunia-se num dos gabinetes do palácio Real,  o governo passaria a ser denominado de Gabinet Office e a pessoa designada para coordenar as suas reuniões de Primer Minister. No último governo do século XVIII, chefiado por William Pitt (1759/1806), o país passou a ser governado por essa personalidade, tornando-se o Rei (ou rainha), chefe da monarquia, representação permanente da Nação, sem ingerência direta nas funções executivas. Essa modalidade viria a ser resumida na frase o Rei reina mas não governa.

        A novidade representada pela experiência inglesa seria anunciada no continente na obra O  espírito das leis, publicado em 1748, da autoria de Montesquieu (Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu; 1689/1755). Tendo como tema as formas de governo, detém-se, em caráter pioneiro, no que a seu ver seria a singularidade da experiência inglesa. Aponta-a como correspondendo à existência de três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Escreve: “As monarquias que conhecemos não têm como aquela a que acabamos de nos referir, a liberdade como seu objetivo direto; buscam somente a glória dos cidadãos, do Estado e do Príncipe. Mas desta glória resulta um espírito de liberdade que, nesses Estados, pode também construir grandes coisas e talvez contribuir tanto para a felicidade como a própria liberdade” Os antigos, acrescenta, “que não conheciam a divisão dos três poderes no governo de um só, não podiam, ter uma idéia correta da monarquia.  Em Roma houve fase em que havia dois daqueles poderes e até mesmo algo de assemelhado ao terceiro poder (magistratura) mas não se tratava de regime monárquico. Conclui deste modo: “Desejaria verificar em todos os governos moderados que conhecemos, qual é a distribuição dos três poderes e daí calcular os graus de liberdade que cada um pode fruir.”

         Locke enfatizaria que no governo representativo, o Parlamento é o Poder Supremo porque faz a lei mas a sua execução ficará a cargo de outro poder, o Executivo. A colocação nesses termos estabeleceria, desde logo, o longo caminho a percorrer.

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