José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Os homens, no começo, comunicavam-se por gestos. Ou símbolos. Até hoje, ao menos alguns gênios. Como Rubem Braga, que era de Cachoeira de Itapemirim, a terra de Roberto Carlos. E, todas as madrugadas, falava com Millôr Fernandes (os apartamentos eram próximos) mexendo os braços, como aprenderam na marinha. Millôr começava
‒ B/o/m/ d/i/a/.
E Rubem, exagerando como sempre,
‒ B/o/m/ d/i//a m/e/u/ c/a/r/o/ c/o/l/e/g/a/ d/e/ p/r/a/ç/a/s/ e/ d/e/ m/a/d/r/u/g/a/d/a/s.
Saudades dos amigos queridos. Só que esse tipo de comunicação logo foi substituído pelas palavras. Também aqui havendo problemas, com relação às distâncias, que a voz ia só até onde o ouvido pudesse escutar. Cito um caso. Emilio Menezes, na Academia Brasileira de Letras, odiava o confrade Oliveira Lima ‒ por Gilberto Freyre definido como Quixote Gordo. Quando estava no Rio, não era sempre, Oliveira e sua mulher, Flora, todas as tardes saiam de braços dados para caminhar em Copacabana. Emílio ficava na esquina do edifício e, quando passavam, dizia com altura de voz suficiente para que Oliveira, pobre dele, pudesse ouvir
‒ Aí vão a Flora e a Fauna da literatura brasileira.
Com o tempo, essa comunicação foi mudando. E conversas, entre pessoas próximas, passaram a se dar também por formas diferenciadas. Seguem três exemplos, em conversas de que participei com outros amigos, todos especiais na minha vida. E, com cada um deles, aprendi muito. Sobretudo vendo a vida por outros olhos, mais serenos e tranquilos, compreendendo a beleza que se pode ver na natureza, nas obras dos homens, nos gestos. Grandes personagens.
O primeiro foi Noberto Bobbio, de Turim (Itália), para Luigi Ferrajoli (L’itinenario di NB: della teoria generale del diritto alla teoria dela democrazia) “maior filósofo teórico do Direito e maior filósofo da política”. Fui seu primeiro tradutor, no Brasil (texto inicial, Diritto e Forza). Nossas conversas ocorreram sempre via cartas; hoje, diria Pessoa, em “tintas remotas e desbotadas” (Álvaro de Campos, O esplendor dos mapas). Até cheguei a convidá-lo para vir ao Recife. Respondeu de maneira curiosa, dizendo não, preferia ficar em casa, “que já começo a sentir as primeiras mordidas da velhice”. Apesar disso viveu bem e só nos deixou em 2004, com 94 anos.
O segundo foi Carlos Drummond de Andrade, a partir de 1985, dois anos antes do seu fim. A relação começou quando, na Capitania dos Portos, registrei o nome de um pequeno barco a vela que tinha usando verso de seu Poema das sete faces (aquele do “Mundo, mundo, vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não uma solução”), que era “Mais vasto é o meu coração”. E mandei foto dele ao mar, navegando. Respondeu com bilhete, que até hoje guardo, “Meu verso num barco ‒ haverá maior prêmio para um poeta?” A partir daí, conversávamos com frequência às noites. Por telefone. Andava já longe dos tempos em que se divertia falsificando a assinatura do ministro da Educação, seu chefe Gustavo Capanema, em bilhetes que enviava para os amigos. Estava, desde a morte da filha única Julieta (câncer), já desencantado com a vida. Por vezes repetia frase que antes escrevera, “do meu passado só restam mortos” (Claro Enigma). Não durou muito depois de se sentir sozinho e nos disse adeus em 1987.
O terceiro foi o uruguaio Eduardo Galeano. Nossas conversas se deram sempre a partir de e-mails em que se assinava HUGALE ‒ uma espécie de heterônimo a partir do nome, eduardo HUGhes GALEano. Das definições que costumava lembrar me encantou uma que citava sempre, do amigo Fernando Birri, sobre a utopia: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos e se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Estávamos acertando uma vinda sua à praia da Lagoa Azul, para provar do mar de Pernambuco, quando começou a sofrer com um câncer injusto. Ao encerrar conhecido poema (O direito de sonhar), escreveu que “Neste mundo…/ Seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro/ E cada noite como se fosse a última”. E assim se deu, pena, sua última noite ocorreu em 2015.
Só que, hoje, tudo vai sendo substituído pela internet. Que ela é quase Deus; por ter, como ele, os dons da ubiquidade, da onisciência e da onipotência. Sem contar que, depois da Inteligência Artificial, as coisas vão ficando ainda pior. E já pressinto aquele dia inevitável em que vai aparecer, na telinha do computador, um cidadão que tenha como endereço eletrônico otodopoderoso@céu.com, em mensagem dizendo
‒ Bons dias, amigo José Paulo, estou à sua espera para jantar.
Se assim for, e quando for, estou preparado para responder
‒ Não posso, escusas, que vou encontrar com um neto.
Para, espero, ele responder
‒ Lamento não ter tido um, fiquei só com o Filho, pena para mim. Considerando suas palavras, então, vamos deixar nosso encontro para o próximo ano. Graças. Adeus.
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