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{ ARTIGO }

A epopeia de ir à farmácia

O aspecto mais surreal de ir à farmácia é a alegria estampada no rosto da vendedora quando a compra não se efetiva, escreve Rubens Figueiredo

Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

 

Tem uma placa de rua na espiritualizada cidade de Fátima, em Portugal, que indica para um lado a Catedral da Fé, que faz parte do santuário cotado para se tornar Patrimônio da Humanidade pelo seu valor espiritual, cultural e artístico, e para o outro, uma farmácia. Não se trata de uma farmácia específica, daquelas com grife, estilo “Farmácia Louis Vuitton” ou “Drogaria Cartier”. Estava lá, despretensiosa, mas insinuando ser uma referência à imponente Catedral: “farmácia”.

Na cidade de São Paulo, não precisamos desse tipo de indicação. Dependendo do bairro, corremos o risco de esbarrar com uma farmácia a cada cinquenta metros. Tivéssemos o hábito de nossos irmãos portugueses, faltariam calçadas para tanta placa. Uma rápida pesquisa no Google, secundada pelos raciocínios da Inteligência Artificial, confirma a suspeita: somos o país com mais farmácias no mundo. Os levantamentos oscilam 90 a 120 mil estabelecimentos no território brasileiro.

Ir à uma unidade farmacêutica é diferente de executar um simples ato de compra e venda. Trata-se de uma aventura única. Começa na fila. Como 90% dos compradores têm preferência por conta da idade avançada, a fila preferencial se transforma em uma fila única. E os atendimentos são demorados por conta da lista enorme de remédios a serem adquiridos e as explicações de como administrá-los. É necessário que as receitas estejam no prazo de validade, com o CRM do médico identificado, existam todos os medicamentos na loja e os consumidores forneçam, com uma rapidez incompatível à capacidade de verbalização do emissor entrado nos anos, informações sobre o número do CPF, endereço, plano de saúde etc.

Por um mistério que nem Peter Drucker conseguiria explicar, dos quatro atendentes postados atrás do balcão avistando a fila se avolumando, três estão entretidos em outras atividades, como atender telefone (fixo), conferir os pedidos do iFood ou assistir dancinhas no TikTok. Circunspectos, eles evitam o contato visual com os clientes da fila, fingindo que estão sobrecarregados de trabalho, tamanha a atenção que empregam em suas secundárias tarefas.

Quando chega a vez de ser atendido do sobrevivente que conseguiu manter-se em pé por 40 minutos na fila sem ter uma fissura no fêmur, a única funcionária que estava efetivamente trabalhando se desloca velozmente para o caixa, que está vazio porque a responsável pelo serviço está recolocando produtos nas gôndolas. O fatigado comprador velhinho recebe um impresso comprido contendo, em letras minúsculas, as ofertas do dia, entre as quais se destacam coisas que ele jamais usará, como shampoos para cabelos volumosos ou energéticos capazes de nos dar “asas”.

Enquanto isso, dois atendentes que não atendiam os que estavam na fila deixam seus postos e começam a explicar para um grupo de jovens que não estavam na fila os tipos de protetor solar e cremes hidratantes que estão nas prateleiras que circundam a loja. Ágeis, as moças chegam ao caixa antes do velhinho, que está tentando encaixar os óculos para ler as promoções oferecidas. O velhinho é atendido depois, e tem que repetir para o caixa exatamente as informações que fornecera à moça no balcão.

Mas o aspecto mais surreal da epopeia de ir à farmácia é a alegria estampada no rosto da vendedora quando a compra não se efetiva, seja porque alguma coisa está errada na receita ou não tem o medicamento. Pode parecer incrível, mas a atendente, ao achar um motivo que não complete o atendimento, entra em harmonia com seu destino, sentindo-se recompensada em sua missão. Enquanto isso, mais idosos chegam na fila de idosos e uma cliente conversa animadamente sobre o aniversário de seu bisneto com a única balconista que está efetivamente atendendo. Chega uma mãe com aqueles carrinhos para gêmeos e atravanca o corredor, derrubando alguns itens das prateleiras ao lado. Por fim, depois de pagar, você dá uma nota pelo atendimento recebido.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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