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A mulher, o genro e a sogra

José Paulo Cavalcanti Filho escreve uma parábola para abordar o direito constitucional à liberdade de expressão

José Paulo Cavalcanti Filho

Edição Scriptum

 

A Liberdade de Expressão, garantida no Brasil pela Constituição (arts. 5º, IV e 220), está ficando arriscada para quem fala. O ministro do Supremo Alexandre de Moraes, na condução de um Inquérito absolutamente ilegal (basta conferir os arts. 103 e 129 da Constituição), alegremente censura, por decisões monocráticas (única Corte, no mundo, em que isso é possível), mais de mil cidadãos que não podem mais dizer o que pensam. Tudo em sigilo. O Big Brother, de George Orwell, convertido em realidade. E tantos que se dizem libertários permanecem mudos, num silêncio cúmplice, como se fosse algo natural na Democracia. Assim, por mera prudência (Baltazar Gracian até escreveu livro sobre isso, A arte da prudência), decidi hoje falar do Brasil por outros caminhos. De propósito. Em uma parábola.

E já digo que tudo começou quando um casal decidiu lembrar a lua-de-mel, passada em Buenos Aires. Como antes, iriam de carro. Problema é ter a mulher decidido que também iria, na viagem, a mãe dela. Bem velhinha, coitada, enfim teria chance de conhecer um país estrangeiro. E lá se foram, os três, em busca de emoções. Na primeira noite, já hospedados, tiveram que jantar sozinhos. Por estar a velha cansada. Na volta, de madrugada, encontraram seu corpo imóvel na cama. Em paz. Que para desgraça de todos, sobretudo da própria, teve a coitada a infeliz ideia de falecer.

Por cima das dores, a realidade. Começavam, ali, os infortúnios do casal. Era preciso fazer autópsia. E também, como informou o gerente, investigar as causas dessa morte. Haveria inquérito policial, com depoimentos e perícias. Teriam que passar, na cidade, pelo menos um mês, antes de poder voltar ao Brasil. Angústia. Dinheiro não tinham. E ele seria despedido quando não aparecesse no trabalho. Foi quando surgiu, no quarto, o médico do hotel com uma ideia tresloucada. A de aplicar formol, no corpo da velha, permitindo que fizessem a viagem de volta. Para enterrá-la no Brasil. Com todas as honras que merecia.

Foi dizer e fazer. Colocaram o pequeno corpo em uma mala e puseram no carro. Partindo, antes mesmo do nascer do sol, na direção de casa. Chegando no interior do Paraná, aliviados por terem escapado aos riscos que correram na fronteira, pararam para um lanche. Problema é que, quando voltaram para retomar viagem, o lugar do carro estava limpo. Sem o próprio. Que nunca mais apareceu. Decidiram dar por perdido e voltaram, para casa, de avião. Aos familiares, versão foi terem enterrado a velha em Buenos Ayres. E, junto com o carro, levaram também certidão de óbito e papéis do cemitério argentino. Nem sabiam mais, sequer, onde a pobre velha foi enterrada. Todos acreditaram. E ninguém mais falou disso.

Faltando apenas dizer que engraçado, nessa história, é ser ela real. A verdade nem sempre é crível. Como dizia Flaubert, comentando seu romance Madame Bovary, “quando se escreve sobre a vida, às vezes é preciso falseá-la”.

Certa vez pediram, ao amigo Millôr, para dar o exemplo de uma parábola. Atendeu, “o fogo da paixão, como qualquer outro fogo, não vive sem oxigênio”. Silêncio na sala, que ninguém entendeu. E ele completou: “Agora vocês me digam o que significa oxigênio aí, nessa parábola que acabo de inventar”.

Para não deixar o leitor na dúvida, indico logo qual o oxigênio dessa historinha que contei. Já dizendo que vejo, naquela pobre velhinha, o povo brasileiro. Como ela jogado, de um lado para o outro, sem voz, nem vez, incapaz de escolher seu próprio destino. E vejo, naquele carro, a representação de nossas esperanças. Levadas embora, pelos que se preocupam só em enriquecer, para lugar incerto e não sabido.

  1. Semana passada, escrevi sobre a Inteligência Artificial – IA. Entre os comentários dos leitores, peço licença para citar parte de (apenas) três, que fugiram do convencional:
  2. FERNANDO ANTÔNIO GONÇALVES, mestre. Duvidando que a Inteligência Artificial seja capaz de responder pede que transfira, aos confrades na Academia Brasileira de Letras, essas 10 questões: “a) Como alguém encontra a felicidade? b) Qual o segredo do processo criativo? c) Quais são os limites do conhecimento? d) O que todos nós devemos aprender? e) Como viver sem estresse? f) Qual a responsabilidade dos seres humanos? g) Por que há tanto mal no mundo? h) O que é sabedoria? i) Qual é o caminho para a paz interior? j) Do que devo ter medo?”.
  3. IGNEZ BARROS, erudita. “Flaubert é um autor admirável, pela elegância do estilo e por sua coragem ao tratar de assunto que ofendia a moral pública e religiosa e os bons costumes, do Século XIX, comMadame Bovary. O romance foi censurado e Flaubert condenado, sendo absolvido só em 1857. Madame Bovaryc’ est moi, disse à frente dos Tribunais. Abro ainda um parêntese para falar de André Maurois, com sua Thérèse Desqueyroux (Séc. XX), cuja temática era similar à de Madame Bovary”.
  4. JESSIER QUIRINO, poeta. “Meu bom e velho cumpadre Zé Paulo. Você, um vivente analógico de alto calado, fez o teste com refinado grau de exigência e o animal foi lá e pimba! Ofereceu um resultado pei-bufo, pleno de convencimento. Só resta agora os nossos gestos largos nas inflexões das falas, no brusco dos fatos e no manso do viver. A máquina se atrapalha nessa filigrana de emoção que só o cristão sabe fazer. Que Deus tape as oiças dessa IA e seja louvado, JQ”.

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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