José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Faz pouco falei sobre como se deu a posse de Sarney, eleito vice e que passou a ser, definitivamente, presidente da República. Sacramentando o fim da Ditadura Militar. Leitores pediram que seguisse nessa conversa lembrando nosso passado. Manda quem pode (eles), obedece quem tem juízo, ou pensa que tem (o que dá no mesmo). E volto àquele tempo, alguns dias antes, para contar como Sarney assumiu como presidente interino; posto que Tancredo Neves estava em um hospital e ninguém sabia se poderia mais tarde, depois de recuperado, ser presidente. Véspera da posse que seria de Tancredo. Chegamos, no aeroporto de Brasília, preparados para a grande festa da redemocratização. Mas não correu tudo como se acreditava; que, fora da programação, a Polícia Federal me esperava.
– O ministro Fernando Lyra pediu para ir direto ao gabinete de Dornelles.
Maria Lectícia e os pais dela, dona do Carmo e o dr. Armando Monteiro Filho, foram para o hotel; e, eu, para a Esplanada. Francisco Dornelles era sobrinho de Tancredo, futuro ministro da Fazenda e homem forte do seu governo. Perplexidade no ar, pelas incertezas do momento. Na sala de espera se amontoavam assessores, militares, quase todos os futuros ministros. O baiano Carlos Santana (da Saúde) ficava olhando só para o alto, imóvel, como se estivesse congelado. O gaúcho Pedro Simon (da Agricultura) rodava em volta dele mesmo, como um peru, sem parar. Fernando, ministro da Justiça, disse
– Vai assumir (a presidência da República) Ulysses (Guimarães), como presidente da Câmara dos Deputados.
– Não pode, Fernando (como a doença de Tancredo era pública, já tinha examinado as questões jurídicas). O vice (Sarney) presta compromisso, perante o Congresso. Tancredo não, que está no hospital e tem 10 dias para isso. Ainda mais, por haver “motivo de força maior” (Constituição da época, art. 78). O Congresso declara momentaneamente vago, seu cargo, e assume o vice. Esse o caminho.
– Mas assume Ulysses.
– Então pode escolher outro para meu lugar, amigo. Que nosso primeiro gesto, no Ministério, seria uma ilegalidade. E não farei parte disso.
Algum tempo depois, Dornelles chamou cinco ou seis para reunião na sala dele (já com muitos outros personagens, por lá). O resto ficou onde estava. Na saída, Fernando contou como foi. Dorneles
– Affonso Arinos disse haver um antecedente, com Rodrigo Alves; que, doente, assumiu seu vice Delfim Moreira. Brossard e Saulo Ramos defendem a mesma tese. Fosse pouco, o próprio Ulysses prefere Sarney, repetindo sempre “é isso que a Constituição manda”. E Leitão de Abreu (que coordenava a transição por João Figueiredo, último presidente militar) garante que Sarney assumirá sem contestações.
O futuro ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, pediu a palavra. Era comandante do 3º Exército e contava com apoio de parte expressiva das Forças Armadas. Mostrou uma Constituição cinza, edição de bolso (quem viveu em Brasília, naquele tempo, sabe qual era) e falou
– Devemos seguir o que diz esse livrinho.
Fernando
– Meu Secretário Geral (eu) também diz que assume Sarney, como vice. E nem vai ficar no cargo, se a gente escolher Ulysses.
Muitos outros confirmaram esse entendimento. E Leônidas, depois de dar um tapa forte na mesa,
– Então está resolvido. Assume Sarney. Alguém é contra?
Silêncio na sala.
– E não se fala mais nisso.
Ninguém teve disposição, ou coragem, para contradizer. A palavra das forças armadas, numa hora dessas, é forte. E mais tarde, já na casa de Sarney, a transição seria sacramentada em ata por todos assinada. Foi assim.
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