José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
“É o mais belo poema do mundo”, segundo Hemy Hourcade. No início dos anos 2000, o jornal parisiense Liberátion fez enquete, com 100 poetas, para saber qual teria sido o maior poema do Século XX. Ganhou a Tabacaria, de Fernando Pessoa; e, em seguida, The wasted land (esse título tem cinco traduções diferentes, no Brasil, prefiro Terra devastada), de T.S. Elliot. Mas haveria mesmo uma tabacaria da Tabacaria? Isso sempre desejei saber. Como nenhum especialista quis perder tempo na pesquisa, para responder, tive que procurar eu mesmo.
Para tanto é preciso, antes de tudo, lembrar que nosso poeta só escrevia sobre o que estava de seu lado ‒ amigos, família, geografia da cidade, admirações literárias, mitologia, por aí. Nada, nele, era por acaso. Em outros escritores poderia ser algo secundário ‒ a tabacaria, o café, a praça, uma loja qualquer em que a cena se passasse. Algum espaço, banal, escolhido sem maiores preocupações. Já com Pessoa, não. Vênia para confessar que o livro que escrevi sobre ele (Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Ed. Record, depois também publicado em mais 12 países) começou, de verdade, no momento mágico em que descobri isso.
Então, reli as 27.543 páginas que deixou na sua Arca, mais os muitos esparsos, no total quase 30 mil; e sabia quando escreveu cada uma delas, qual a razão que o levou a fazer isso, em quem pensava. Como se Pessoa deixasse, em tudo que escrevia, rastros de sua própria vida. Sabia então, sem dúvida possível, que existia mesmo essa tabacaria da Tabacaria. Mas qual seria?, eis a questão.
Para alguns biógrafos, tratava-se da Tabacaria Costa, ainda hoje funcionando na rua Áurea, 295 ‒ por lá, quase sempre, comprar tabacos. Segundo outros, seria a Casa Havaneza do Chiado, na rua Garrett, 124-134, dedicada ao comércio de cigarros por miúdo, outros artigos para fumadores, jornais, lotaria. O que faz sentido por ser vizinha, parede com parede, da Brasileira (do Chiado, não a do Rossio), onde ia (quase) todos os dias para encontrar seu grupo de amigos.
Para outros, ainda, seria a Leitaria Acadêmica, destinada a comércio e venda de leite, laticínios, pastelarias, vinhos, engarrafados e a miúdo, frutaria, águas minerais etc. Neste caso, uma impossibilidade absoluta, por ter sido inaugurada só em 1º de janeiro de 1938, quando Pessoa já estava morto. Opiniões dadas, todas, sem nenhuma forte histórica.
Versão mais comum, entre autores, é que seria A Morgadinha, situada em Campo do Ourique, na rua Silva Carvalho 13/15, esquina com Coelho da Rocha ‒ a rua em que morava Pessoa, no número 16, quando foi escrito a Tabacaria. Por se tratar do único local, próximo a seu edifício em que se podia comprar tabacos. A ideia de que tenha sido mesmo ela se baseia no próprio poema, situando a tabacaria em frente a suas janelas.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo
que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?).
Mas também essa hipótese não se sustenta. Primeiro porque o quarto de Pessoa, à época em que escreveu esses versos, não tinha janela nenhuma. Sendo único assim, com vista para a rua, o destinado aos sobrinhos. Uma informação que me foi dada pela própria Manuela Nogueira, com toda a autoridade de ser uma das duas crianças (a outra era seu irmão João Miguel) que dormia nesse quarto da frente. E também por António Manuel Rodrigues de Seixas, filho do barbeiro Manassés, que (quase sempre) acompanhava o pai quando ia fazer diariamente a barba de Pessoa, no seu quarto.
O apartamento foi mais tarde inteiramente destruído, por dentro, nas reformas para a ambientação da hoje Casa Fernando Pessoa. Sem mais registros do passado, pois. Mas a planta que desenhou esse filho do barbeiro Manassés, em minha frente, começava com a sala de jantar e o quarto destinado às crianças, ambos com janelas; depois, em um corredor, o quarto da irmã Teca, bem espaçoso; e, só então, o de Pessoa. Pequeno, como de um empregado, escuro, quente, deprimente, segundo seu testemunho. E sem janela nenhuma.
Também porque A Morgadinha ficava numa esquina, em local mais recuado que os demais imóveis da rua Coelho da Rocha ‒ entre eles, o edifício de Pessoa. Do mesmo lado da rua. E ainda quando se projetasse o corpo para fora da janela do apartamento, olhando para o lado esquerdo (como fiz), não se poderia vê-la da janela daquele quarto da frente. Razão pela qual jamais poderia ser essa a “Tabacaria de defronte” ou “do outro lado da rua, como coisa real por fora”, assim lembra nos versos ‒ em que se vê a cena descrita no fim do poema, com dois amigos conversando (“Esteves” e o “dono da Tabacaria”).
Segundo os muitos depoimentos que me foram dados por vizinhos daquele tempo, especialmente António (filho do barbeiro Manassés) e Carlos Bate Chapa, seus proprietários seriam Oliveira e Trindade; e por uma porta do estabelecimento, na rua Silva Carvalho, era guardado o automóvel Ford de um dos seus proprietários. Não terá sido bem assim.
Oliveira, com certeza, é Manuel Santana de Oliveira, solteiro, maior, empregado do comércio, que residia na avenida Padre Manuel da Nóbrega, 19-4º esquerdo. Um dos sócios que criaram essa A Morgadinha. Enquanto o restante seria um empregado, Júlio Trindade, que morava na rua Saraiva de Carvalho, 114, bem próximo àquele endereço. Era ele o “rechonchudo Trindade” de que falava Bernardo Soares, no Desassossego.
Já a marca do carro, Ford, era praticamente inexistente na Lisboa dos tempos de Pessoa. Assim, mais certamente, se tem que o dito Oliveira guardava, ali, seu automóvel (de marca ignorada); traída, pelo tempo, a memória desses velhos vizinhos com quem conversei.
De certo apenas se tendo que à época do poema, no endereço daquela esquina, havia mesmo um (outro) estabelecimento que vendia vinhos e chocolates; além, segundo a sobrinha Manuela Nogueira, de jornais, tabacos e artigos de papelaria. Sem mais registros, nas Conservatórias, de qual seria.
Não só por isso. Também, e sobretudo, pela circunstância de nem existir essa A Morgadinha, naquele tempo. Só isto bastaria. Segundo a Conservatória do Registro Comercial (Junta Comercial) de Lisboa foi constituída (registro número 32.082) só em 3 de junho de 1958, dedicada ao comércio de leiteria, pastelaria, vinhos e frutas; dissolvida essa Morgadinha, pouco depois, segundo escritura de 17 de outubro de 1971 registrada no 15º Cartório Notarial de Lisboa.
Seguindo na busca de qual seria a tabacaria da Tabacaria bom lembrar que, em fins do Século XIX e começo do Século XX, Lisboa tinha 80 tabacarias explorando o mercado de cigarros, cigarrilhas e charutos, por vezes também vendendo jornais e loterias (algumas ainda fazendo câmbio de moedas). Começava, ali, a era das Havanezas, um símbolo da belle époque na Lisboa de então.
E entre essas havanezas, fundada ao final do século XIX, estava a Havaneza dos Retroseiros. Ficava bem em frente ao escritório da Casa Moitinho de Almeida, na esquina da então rua dos Retroseiros, 63/65 com a rua da Prata, 65 (até pouco antes, rua Bela da Rainha). “Do outro lado da rua, como coisa real por fora”, como lembra nos versos. Retroses são fios de seda ou algodão, para costura ou bordado; tendo esse nome, a serventia, por reunir todas as retroserias da parte baixa da cidade. Ainda hoje assim se dá. Antes, se chamava d’El-Rei; em sequência, da Madalena; e, finalmente, o nome que hoje tem, dos Retrozeiros.
No mesmo imóvel, presentemente, está a Pelaria Pampas ‒ estabelecimento dedicado ao comércio de peles, sobretudo da Argentina. Por conta de mudanças na geografia da cidade, a pelaria, que ocupa hoje o imóvel, já não se volta em um dos lados para a rua da Prata; recebendo, sua única porta, o número 63 da rua da Conceição.
Segundo o Almanaque Palhares de 1900, a Havaneza dos Retroseiros é definida como um depósito de tabacos medicinais e estrangeiros, jornais, loterias e outros artigos próprios para fumadores; com telefone 21.004, assim constava da Lista dos Assinantes da Companhia, de 1930. Seu proprietário, no começo do século, era Manuel Alves Rodrigues ‒ um cavalheiro magro, com bigodes retorcidos de volta inteira, barbicha no queixo (desde então conhecida como pera) e cabelo (bem à moda da época) apartado ao meio. Usava colarinho gomado, de pontas redondas, e laço caindo à Lavalière como um colar.
Na Casa Moutinho de Almeida, Pessoa datilografava seus poemas à noite, depois de findos os trabalhos de tradução, e ali foi escrito a Tabacaria ‒ usando a máquina de datilografar do patrão, então demasiado cara para seus poucos recursos. Essa informação é do poeta Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho do proprietário da casa, que pela manhã comentava os versos com seu autor. No térreo do escritório ficavam os funcionários. No primeiro andar, a sala do patrão. E, um andar acima, estava sua mansarda. “Mas sou e talvez serei sempre o da mansarda, ainda que não more nela”, diz no poema; posto morar, como vimos, na rua Coelho da Rocha 16, em Campo de Ourique.
E da janela do escritório, como pude comprovar, dá mesmo para ver bem em frente o imóvel em que estava dita Havaneza dos Retroseiros. Sendo prova definitiva de ser mesmo essa, a tabacaria, dada pelo próprio Pessoa, em poema sem título (de 14/10/1930) que começa com esses versos:
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.
O Alves dos versos, como vimos, é Manuel Alves Rodrigues, antigo proprietário do estabelecimento. “O dono pálido da tabacaria”, como diz Pessoa no Desassossego (Bernardo Soares). Trata-se da única tabacaria, na Lisboa daquele tempo, que tinha um Alves como proprietário. Tudo resumido, amigo leitor, afinal chegávamos à Havaneza dos Retrozeiros. Sem dúvida possível, era essa a tabacaria da Tabacaria.
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