Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
É humilhante tentar abrir um copinho de água, desses de plástico. Aquela aba minúscula parece ter sido projetada por uma equação na qual “força máxima + todo o atrito possível + habilidade + fé profunda = movimento zero”. Você puxa, torce, apela pra dignidade do polegar — nada. Já testemunhei 12 anos de reuniões semanais com o mesmo ritual. Alguém tentando abrir o copinho com discrição e, ao falhar, recorrendo ao plano alternativo. Que é sempre o mesmo: perfurar a proteção com uma caneta BIC.
Algo parecido se passa com aquelas embalagens de manteiga, equipadas com o plastiquinho aparentemente inofensivo que se projeta lateralmente. Você tenta segurar, puxar, levantar, faz movimentos circulares, contrai o abdômen, encaixa a pelve… Alguns, tentam prendê-lo discretamente entre os dentes, usando o guardanapo como uma pequena cortina. Confrontados com a realidade, somos obrigados a apelar para uma espetada com a faca, o que nos ridiculariza, devido à desproporção entre o instrumento utilizado e a dimensão da empreitada.
Não é só a manteiga. A embalagem de queijo prato exige mais perícia do que cirurgia robótica. Estava na praia com meu filho e os amigos dele — todos na casa dos 15. Resolvi desafiá-los e checar se o problema era geracional. Vamos ver se algum desses nativos digitais é capaz de abrir isso aqui com suas próprias mãos? Todos, com dedos treinados pelo TikTok, falharam miseravelmente. A embalagem do queijo ficou intacta, selada do jeito que veio ao mundo.
O vidro de palmito? Um desafio kantiano, de natureza moral. Nem o exterminador do futuro abriria na força bruta. Precisa habilidade, planejamento. Fazer um furinho bem no centro da tampa avessa ao deslocamento, tirar o vácuo, violar a integridade do sistema que nasceu para inviabilizar intervenções. E aí o palmito vem, mas já vencido na origem. De todos os alimentos, é o que mais rapidamente perde a vontade de ser o que era depois que entra em contato com a pessoa que lhe apresenta o oxigênio.
Mas nenhuma derrota foi tão marcante quanto a tentativa de abrir o galão de fluido para a lareira. Segurei o galão com convicção, como quem está prestes a resolver um problema civilizacional. Revisei mentalmente as Leis de Newton, de Boyle, e até a lógica aristotélica, que, segundo meus princípios, haveria de me conceder vantagem sobre uma simples tampa de plástico. Cortei as garras de segurança. Peguei uma toalha áspera. Convoquei os músculos do braço direito, moldados por décadas de tênis. Nada.
Comecei a questionar a jornada humana sobre a terra. A ignorância teria triunfado? Lembrei-me do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que talvez explicasse por que uma tampa que parece girar, na verdade, o que está girando é o universo ao seu redor, o bairro, o prédio, a cozinha, você — tudo, menos a tampa.
E então a Cleni, funcionária do lar, meio distraída, olhando de soslaio e com absoluta confiança sobre o destino da batata na frigideira, disse: “vou dar um jeito nisso”. Pensei: “como é ingênua!”. Foi até a despensa, andar de quem tinha que voltar logo para fazer coisa mais importante. Pegou uma chave grifo de encanador, girou a tampa com a tranquilidade de quem já viu coisa muito pior na vida e voltou para o fogão, sem ter ideia da epopeia que acabara de protagonizar.
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