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{ ARTIGO }

Adolescência impenetrável

A humanidade nunca teve tanta informação circulando como agora; e essas informações se acomodam em nichos com cultura própria, escreve Rubens Figueiredo

Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum                                  

 

 

Você pode se lembrar de cenas ou frases marcantes de alguns filmes. Em Casablanca, uma Ingrid Bergman, com seus olhos de acolher caravelas e sonhando com Rick (ninguém menos que Humphrey Bogart), pede ao pianista cúmplice: “Play it again, Sam”. Depois de exaustiva jornada, Arnold Schwarzenegger, manda um inesquecível “Hasta la vista, baby” ao inimigo, em O Exterminador do Futuro 2. Ou do tiro irônico que o caçador da arca perdida, vivido por Harrison Ford, acerta na testa do incauto beduíno que o ameaçava fazendo malabarismos assustadores com uma espada brilhante a afiada.

Um filme e uma série vão muito além de cenas marcantes. Têm direção, enredo, fotografia, performance dos atores, música, suspense, drama, emoção e risos. Também é verdade que, dependendo do tempo de vida das sinapses que transmitem os impulsos nervosos e habitam nosso cérebro, a lembrança favorece aquilo que vivemos recentemente. Seja como for, impressionam a dinâmica e intensidade da série Adolescência (Netflix), de apenas quatro episódios.

Já começa com a prisão de Jamie (na brilhante interpretação de Owen Cooper), um menino de 13 anos suspeito de assassinato. É impressionante. Chama a atenção a absoluta desproporcionalidade entre a energia demonstrada pela polícia na invasão da modesta casa da surpresa família – tem-se a impressão de que duas incursões dessa natureza extinguiria o tráfico de drogas no Rio de Janeiro – e a suposta ameaça representada pelo sonolento delinquente mirim. A tensão inicial já nos deixa em estado de alerta.

Wimer Bottura é um médico psiquiatra da USP especializado em relações entre pais e filhos. Ele diz que os pais não foram treinados para ser pais. Você faz cursos para ser engenheiro, cirurgião, eletricista, podólogo, jogador de xadrez, baterista – ou até outras ocupações mais exóticas, como cientista político. Mas ninguém é treinado para ser pai. A paternidade é exercida quase por tentativa e erro. Fazemos o que julgamos ser bom, a partir do que observamos e de nossa experiência como filhos. A autoridade como pais, diz Bottura, não deriva da função, mas de nossa capacidade de fazer os filhos perceberem que temos algo a ensinar. Pais erram. E erram muito. Mas erram tentando acertar.

Adolescência trata do abismo, do fosso que se estabelece entre compreensão e vivência. Família, educadores, escola, polícia – ninguém tem a mínima noção do que está acontecendo no universo dos adolescentes. Eles vivem seu mundo particular no meio das instituições que deveriam prepará-los para o mundo de todo mundo. Os valores, a linguagem, os gestos, até os sorrisos – tudo é diferente, tem significado identificável só para e entre eles. Esse descolamento expõe a fragilidade e a impotência dos adultos.

Prenderam meu filho e ele pode ser um assassino. O momento da percepção do pai (protagonizado por Stephen Grahan) que falhou como pai tendo a certeza de que fazia o melhor para seu filho, tem o efeito de um vírus deletando nossos valores mais arraigados. Onde errei? Apanhei muito do meu pai e prometi que jamais faria isso com meus filhos, desabafa. Cumpri. Levei meu filho para fazer o que a maioria dos pais faz: jogar futebol, lutar boxe… Tentei me conectar com ele da maneira que eu imaginei que fosse certa. Do meu jeito, amei-o com a intensidade que os pais amam os filhos. Fui muito melhor com ele do que meu pai foi comigo. E deu no que deu.

Outro momento de altíssima carga emocional é a entrevista da profissional responsável por fazer o laudo psicológico de Jamie. Aqui, o ator menino mostra-se diferenciado. Aos poucos, vamos entendendo toda a complexidade da personalidade do aparentemente inofensivo assassino. Também é elucidativa a cena da conversa entre o policial (o ator Ashley Walters) e seu filho, que não se davam bem e ensaiam uma reaproximação por conta do assassinato. Vendo seu pai trabalhando na investigação e fazendo o papel de um paspalho, o filho o chama para explicar como é que funciona a sociedade dos adolescentes, suas regras e símbolos.

A série incomoda e assusta. Gera perplexidade e reflexão. A humanidade nunca teve tanta informação circulando como agora – e essas informações se acomodam em nichos com cultura própria, linguagem peculiar e simbologias inexpugnáveis. Eles estão no quarto ao lado, sempre com laptop ligado. Sentamo-nos juntos à mesa todos os dias, mas não temos a mais pálida noção sobre a excitação e o sofrimento que eles encontram nas redes, o bullying que nos escapa à compreensão, o que pensam e quem podem estar planejando matar.

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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