Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Arlindo Cruz (1958-2025) foi um compositor, músico, cronista da sua gente, que pintou com versos a geografia da sua vida. Autor de mais de 500 sambas, foi parceiro do lendário Zeca Pagodinho. Rimou o dia a dia do subúrbio com amor, sofrimento, diversão e fé. Foi romântico quando o coração batia mais forte e espirituoso quando a risada ameaçava explodir ridicularizando as dificuldades.
Ele contou que estava mudando de casa no subúrbio e levou para ajudá-lo na empreitada um então mirrado Zeca Pagodinho, com seus cerca de 45 quilos. Levanta cama para lá, arrasta geladeira para cá, Arlindo fez quase tudo, com o apoio moral do Zeca, fez questão de frisar. Eles estavam apressados, pois havia uma feijoada com pagode e eles queriam ir.
A mudança atrasou por conta do planejamento otimista demais e a musculatura de menos. Quando chegaram à festa, não havia mais nada. Nem som nem comida. Nem bebida. Olharam uma lata de lixo e a visão que ela lhes oferecia. Do alto da tristeza e da frustração não destilaram raiva. Enxergaram inspiração. Daí surgiu um samba clássico: “Fui no pagode acabou a comida, acabou a bebida acabou a canja, sobrou pra mim o bagaço da laranja”.
Deve ser muito agradável e poético passar uma tarde em Itapuã ou sentir que alguma coisa acontece no seu coração que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João. Mas a intensidade da música O meu lugar, parceria de Arlindo e Mauro Diniz, coloca o bairro de Madureira em um lugar privilegiado na nossa imaginação. Simples e comovente: “o meu lugar é cercado de luta e suor, esperança de vida que nos deixa sem andar e cerveja para comemorar”. Sociologia instintiva que sintetiza a brasilidade explicada por Sérgio Buarque de Holanda e Roberto da Matta.
Arlindo Cruz fez músicas memoráveis, cantou o amor tumultuado, o casal sem vergonha, não teve vergonha de falar do dinheiro curto do SPC, mas teve coragem de alertar que “camarão que dorme a onda leva”. Fez sucesso e sofreu muito nos últimos anos de vida. Foi acometido por um AVC particularmente traiçoeiro em março de 2017, que o impediu de falar, andar e, castigo supremo, cantar.
Integrou o icônico grupo Fundo de Quintal substituindo ninguém menos do que Jorge Aragão, aquele de “malandro, eu ando querendo falar com você”. Foi discípulo do genial Almir Guineto, respeitado no meio, que dizia sempre tomar cuidado para “não deixar a banana comer o macaco”. E interpretado pela “madrinha” Beth Carvalho, Alcione, Maria Rita, Caetano Veloso.
Além de saber o seu lugar, tinha absoluta consciência de quem era. A letra de Meu nome é favela” mostrou que a sofisticação não precisa ser erudita, acadêmica, abastada. Dispensa tapetes, ignora os salões e garçons de luvas. “Meu nome é favela/É do povo, do gueto a minha raiz/becos e vielas/eu encanto e canto uma história feliz/de humildade verdadeira/gente simples, de primeira”.
Arlindo, como um terapeuta de si mesmo, tinha claro também o seu papel nesse mundo – e a ideia que ele tinha do seu papel era seu próprio sonho. O show tem que continuar. Estava tudo errado, diz a letra da música: os duetos não se encontravam, acabara o gás para cantar o mais simples refrão e as notas se esgotaram. Mas aí veio o inconformismo com o fracasso. Com ele, a possibilidade da superação: o conjunto achou o tom, o acorde ficou bom, foi até Paris e os ingressos se esgotaram no Olimpia. “O show tem que continuar”. Fica certeza: pelo que Arlindo Cruz fez, o show “vai” continuar.
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