Samuel Hanan, engenheiro especializado em economia e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Fruto da inação de nossos governantes e sob o silêncio obsequioso de intelectuais, entidades de classe e de boa parte da grande mídia, o empobrecimento da população brasileira avança à velocidade estarrecedora. Hoje, os rendimentos do 1% de brasileiros mais ricos do País correspondem a 34,8 vezes a renda dos 50% mais pobres, discrepância que, por si só, comprova o fracasso das políticas de distribuição de renda e explicam muito sobre o abismo social que delineia as desigualdades tão marcantes na nação.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, e do Instituto Millenium, de 2023 mostram que os 1% mais ricos tinham, em 2018 (portanto antes da pandemia da Covid-19), renda média de R$ 27.744,00, enquanto os 50% mais pobres recebiam R$ 820,00 por mês. Apenas dois anos depois, em 2021, a renda dos mais ricos era de R$ 15.800,00/mês e a dos mais pobres de R$ 464,00/mês. Para os abastados, a queda na renda no período foi de 43,05%; a dos brasileiros mais pobres foi um pouco maior: 43,41%.
Se esses valores forem calculados em moeda norte-americana, a queda é bem maior. A renda dos mais ricos caiu 61,95%, de US$ 7.161,11/mês para US$ 2.724,60/mês, tomando-se por base a cotação do dólar em 31 de dezembro dos anos-referência. Para os mais pobres, a queda foi de 62,20%, de US$ 211,66/mês para US$ 80,01/mês.
Obviamente, a queda na renda tem impacto muito maior na vida dos mais pobres do que no cotidiano dos mais ricos.
Hoje, a enorme maioria (de 93% a 94%) da população brasileira com carteira assinada e trabalhadores autônomos tem rendimento mensal bruto inferior a R$ 4.700,00. Para esses, a renda líquida é pouco superior a R$ 3.920,00 por mês.
É triste também a realidade nacional quando olhamos para o rendimento domiciliar per capita – correspondente à renda total da família dividida pelo número de moradores na residência. Em 2022, a média brasileira era de apenas R$ 1.625,00. Nesse quesito, as maiores rendas estão em três unidades da Federação: Distrito Federal (R$ 2.913,00/mês), São Paulo (R$ 2.148,00) e Rio Grande do Sul (R$ 2.087,00). Os piores resultados estão nas regiões Norte e Nordeste: Amazonas (R$ 965,00), Alagoas (R$ 935,00) e Maranhão (R$ 814,00).
Dados relativos a 2021 publicados este ano pelo Instituto Millenium tornam ainda mais dramático o quadro das desigualdades. Revela que em apenas três Estados o grupo dos 1% mais ricos da nação têm renda superior à da média nacional, de R$ 15.800/mês: Distrito Federal e Rio de Janeiro, ambos com R$ 19.900,00, e São Paulo, com R$ 16.400,00. Rio Grande do Sul (R$ 12.000,00) e Espírito Santo (R$ 11.600,00) vêm em seguida, mas ficam abaixo da média nacional.
Os três Estados com pior colocação nesse quesito são Rondônia (R$ 8.100,00), Paraíba (R$ 8.200,00) e Roraima (R$ 8.300). Muitos dos Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentam média inferior à metade da média nacional.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), publicado em fevereiro de 2023, sobre o coeficiente de Gini no Brasil, retrata a piora nesse indicador que mensura a distribuição de renda em um território (quanto mais próximo de zero, menor é a desigualdade social). Em 2017, o índice Gini brasileiro foi de 0,501, no ano seguinte (2018) subiu para 0,509 e, em 2020, foi de 0,543. Ou seja, a desigualdade social segue crescendo.
A enorme concentração de poder e renda explica muito sobre a perpetuação das desigualdades sociais no Brasil. Um quadro agravado graças às poucas oportunidades de trabalho, péssima administração dos recursos públicos, baixa remuneração dos trabalhadores, alta tributação sobre o consumo e baixíssima escolaridade de grande parte dos brasileiros, dentre outros fatores não menos graves.
Não é de se estranhar, portanto, que a população enfrente pobreza e miséria, condições precárias de moradia, aumento dos índices de violência e da falta de segurança pública, além da má qualidade dos serviços públicos de educação e saúde.
A máxima segundo a qual “sem educação não há salvação” vem sendo sistematicamente ignorada nos últimos 20 ou 25 anos pelos governos, sempre eficientes nos discursos, quase nunca assertivos nas ações práticas.
A implantação do ensino em tempo integral ainda patina, apesar de reconhecida como um grande passo para a melhoria da educação. Hoje, o Brasil tem apenas 11,40% dos alunos matriculados em escolas de tempo integral no ensino fundamental I. A evolução é muito lenta: em 2018 eram 11% e em 2022, 11,40%. Nesse ritmo, o Brasil levará 40 anos para atingir a meta de 50% dos alunos nesse tipo de ensino.
Os números são também nada encorajadores no Ensino Fundamental II. São apenas 13,7% em escolas de tempo integral. Em 2018, eram 10,5%. Nesse ritmo, a meta só será alcançada em mais de 13 anos.
O maior passo foi dado no Ensino Médio, com melhora significativa e encorajadora. Eram 10,5% dos alunos matriculados em 2018 e, em 2022, já eram 20,40%. A manutenção desse ritmo assegurará o alcance da meta (50% dos alunos) em poucos anos.
É fundamental para o País a implantação do ensino em tempo integral em todos os níveis e em todo o território nacional. O modelo, já adotado em países desenvolvidos, é absolutamente recomendável. Com ela, a criança que passa o dia na escola fica socialmente protegida e dá tranquilidade às mães que precisam trabalhar fora para sustentar a casa ou auxiliar na renda familiar. O mais importante, no entanto, é que o aluno tem oportunidade de desenvolver suas habilidades e competências que lhe serão muito úteis, mais tarde, em sua vida profissional e no exercício da cidadania. Há ainda reflexos positivos na saúde e na busca exitosa de colocação no mercado de trabalho, com melhores remunerações e qualidade de vida.
O Brasil precisa olhar com mais cuidado o processo de alfabetização das crianças. Hoje, há deficiências graves nessa etapa. Segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, publicada em 20 de maio, com base em informações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), que acompanha o processo de alfabetização do 2º ano do ensino básico, a proporção de crianças com dificuldade para ler e escrever dobrou entre 2019 e 2021, saltando de 15,5% para 33,8%. Nesse quadro de horror contemporâneo, portanto, uma em cada três crianças não está sendo adequadamente alfabetizada.
A mesma matéria traz outros indicadores que mostram o enorme fosso entre os discursos políticos e a realidade. Um deles é a avaliação internacional pela qual o Brasil teve uma das piores notas em estudos. Apontou que quatro em cada 10 alunos do 4º ano têm dificuldades para ler.
No mesmo jornal, a jornalista Renata Cafardo escreveu o artigo “Adolescentes que não sabem ler”, no qual demonstra muita preocupação com a existência de adolescentes que chegam ao 6º e até ao 9º (portanto, às portas do ensino médio) sem saber ler e escrever fluentemente. Foi dado o alerta: se nada for feito rapidamente, teremos uma legião de jovens com seus direitos massacrados e uma vida escolar e profissional fadada ao fracasso.
E mais. Aponta percentual elevado de crianças em situação de vulnerabilidade social – fator, inclusive, de evasão escolar – e revela que 70% dos valores disponibilizados para a educação via Fundeb estão comprometidos com folha de pagamentos. Com isso, sobra pouco para as outras necessidades inerentes ao ensino de qualidade, como laboratórios, bibliotecas etc.
Questão essencial a ser enfrentada com urgência é a baixa remuneração dos professores, desestímulo à carreira, com consequência desastrosa na qualidade de ensino. As remunerações hoje variam de R$ 3.450,00 a R$ 8.151,00 (para quem possui doutorado) bem abaixo de outras profissões. Em São Paulo, o Estado mais rico da Federação e com plano de carreira, a remuneração mensal dos professores varia de R$ 5.000,00 até R$ 13.000,00 (para os que possuem título de doutor), conforme reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo em 19 de maio de 2022. Para 89% dos professores paulistas, a remuneração, em 2021, ficou em R$ 5.000,00 mensais, o que significa, na prática, que o piso igualou-se ao teto.
O quadro é agravado pela falta de plano de carreira na maioria dos Estados ou mesmo o seu descumprindo onde existe. Faltam políticas públicas que incentivem a docência e tratem a educação com a seriedade que o tema merece. É recorrente a falta de concursos públicos e, por isso, quase metade (44,6%) dos professores trabalham amparados por contratos temporários.
Os desafios postos são enormes. O Brasil ressente-se de mais investimentos na infraestrutura das escolas e, principalmente, de melhor formação e capacitação, além da reformulação do currículo escolar para torná-lo mais próximo das demandas modernas e das profissões do futuro.
Para alcançar a meta de ter ao menos 50% dos alunos do ensino fundamental e médio em regime de tempo integral, o Brasil precisaria ampliar a capacidade física das escolas e arcar com os custos adicionais, notadamente com a contratação de mais professores. Talvez seja necessário dobrar os recursos financeiros hoje alocados nas escolas regulares. Entretanto, não se trata de custo, mas de investimento para mudar o patamar da educação nacional.
Sem que haja uma política de Estado profunda e objetiva em relação à Educação, continuarão existindo dois Brasis. Não se trata das desigualdades regionais, seriíssimas, mas de um Brasil de portadores de CPF que cumprem as leis, e de outro Brasil, uma nação dissociada da realidade e na qual governantes e políticos parecem acometidos de surdez coletiva e cegueira conveniente.
É esse segundo Brasil o maior obstáculo para a construção do primeiro, o sonhado, porque é dominado por quem está mais preocupado em manter – ou ampliar – os seus próprios poderes, à custa de mais despesas e maior endividamento público, hoje já ultrapassando R$ 7,5 trilhões e crescendo à ordem de mais de R$ 700 ou R$ 800 bilhões por ano.
O déficit público aumenta de forma irresponsável, ainda que de forma legal, por meio da aprovação de leis aprovadas pelo Congresso Nacional, possibilitando a flexibilização de gastos, controles e autorizações, agora sob a denominação de novo arcabouço fiscal. Nesse cenário, já está sinalizado aumento de gastos autorizados para 2024 de cerca de R$ 40 bilhões a R$ 80 bilhões sem a necessidade de receitas correspondentes, o que certamente significará uma herança de dificuldades para os futuros governos. Como se não bastasse, já se discute a aprovação de novas leis que descriminalizam qualquer prática do governante que venha a descumprir suas obrigações, tudo extensivo a Estados e municípios, o que é ainda pior.
Discursos e promessas que jamais serão cumpridas continuam sendo a tônica nacional, como se fosse possível resolver todos os problemas do País com o novo marco fiscal e com a reforma tributária – verdadeiro eufemismo para aumento de tributos.
Ninguém assume publicamente que reforma tributária somente será positiva para a população se vier acompanhada de dispositivos que propiciem, de forma imediata e explicita, a redução drástica da tributação sobre o consumo, correção anual das tabelas do Imposto de Renda e das aposentadorias e pensões pagas pelo INSS (pela inflação acumulada nos 12 meses anteriores), e que a defasagem de mais de 147% no IR somente será reposta em até cinco anos, em parcelas anuais.
Os governos ainda não aceitaram a verdade de que o equilíbrio fiscal e o crescimento socioeconômico não virão somente pela via única de aumento dos tributos e sim – e principalmente – por meio da redução dos gastos públicos e efetivo combate a corrupção dos três entes federativos.
Com isso, o País patina e segue sofrendo de três grandes males: a falta de prioridade na Educação, a falta de ética na vida pública e a ausência de um plano de metas, com ações delineadas e rumo bem definido.
Todos os governos que assumem, costumam conjugar cinco verbos em seus primeiros atos: exonerar, nomear, revogar, ampliar e culpar. É muito pouco para um país com tantas necessidades, gargalos a serem eliminados e distorções a serem urgentemente corrigidas. Há muitas outras ações que precisam ser postas em prática.
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