Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Uma das justificativas do governo federal para a criação da PEC da Segurança é a padronização das informações criminais. Não é preciso, necessariamente, uma PEC para isso, mas antes um grande esforço administrativo, estudos, consulta a operadores e especialistas, para construir alguns consensos mínimos entre os Estados. De todo modo, a preocupação é válida e o governo federal avançou muito na construção de uma base nacional de informações criminais nas últimas décadas.
Para alguns tipos de informação – sexo, idade, escolaridade da vítima ou do autor, local e data da ocorrência, tipo de meio utilizado etc. esta padronização não apresenta grandes desafios. Embora até definições aparentemente corriqueiras, como sexo, hoje em dia podem dar margem a várias categorizações e interpretações…
Outras informações, porém, são bem mais difíceis de serem padronizadas e tomo aqui como exemplo as informações sobre drogas. É crucial para qualquer país ter bons dados sobre drogas, como tipos, quantidade, qualidade, preços, rotas, incidência de uso, para que se possam traçar políticas efetivas de prevenção e repressão ao uso e tráfico. Quantidade, qualidade e preço das drogas, em alguns países, são utilizados como indicadores de sucesso da política de controle, supondo-se que o combate eficaz faz diminuir a quantidade de apreensões e simultaneamente piorar a qualidade e aumentar o preço da droga.
Mas montar um bom sistema informacional sobre o tema não é tarefa simples. É preciso pensar antes de tudo em questões filosóficas sobre o que é droga e se estamos incluindo aqui as danosas drogas legais, como remédios, o álcool e o tabaco. O que é droga ilegal, por sua vez, depende também de contexto, época e lugar, como nos recordam os exemplos da ayahuasca, da Lei Seca nos anos 1920 e de Freud recomendando cocaína aos pacientes.
Existem ainda as novas drogas sintéticas, muitas delas sequer catalogadas pelos órgãos policiais. Também é preciso lembrar-se de produtos que, embora legais – cola de sapateiro, éter, benzina etc. podem ser utilizados indevidamente como drogas. E dos insumos utilizados na produção de coca e outras drogas. Assim, estamos diante de uma lista imensa de itens monitoráveis, que vão muito além de maconha, haxixe, cocaína, heroína, crack, oxi, anfetaminas, etc., para mencionar algumas das principais. Em algum momento é preciso jogar as menos comuns numa grande categoria “outras drogas”.
Uma segunda dificuldade é que às vezes o que tem aparência de droga, não é. E o que não tem aparência, é, como no caso da transformação da cocaína em selos de papel dissolvíveis, que circulam nos presídios. No momento da apreensão, o policial não tem como afirmar se o objeto é realmente droga e de que droga está se falando. Para isso é preciso enviar o material apreendido para a perícia, cujos laudos determinarão se são drogas e de que tipo.
Semelhante problema encontramos na mensuração do peso, já que é preciso vários tipos de balanças para estimar corretamente o peso da mercadoria apreendida. É a perícia que estima corretamente o peso, algo que necessita de precisão, ainda mais agora que a quantidade objetiva da droga apreendida pode determinar a decisão da justiça – conjuntamente a outros elementos – para classificar o caso como uso ou tráfico. O Boletim de Ocorrência das polícias traz geralmente apenas estimativas imprecisas do tipo e da quantidade de droga.
A nomenclatura do objeto apreendido muda conforme o tipo de droga e segundo variações regionais usadas pelo tráfico: balinhas, buchas, trouxinhas etc. As unidades de medida, como discutido, são às vezes bastante imprecisas, do tipo, “uma porção“. Descreve-se também o objeto apreendido pela forma de acondicionamento, tal como “caixas”, “potes” e outros. A descrição é do tipo “2 buchas de maconha”, “3 invólucros pequenos com haxixe”, “Quatro papelotes de cocaína”, uma porção de heroína” e por aí afora.
Mas quanto pesa um papelote de cocaína? Ou uma pedra de crack? Existem variações regionais ou os criminosos criaram um sistema para padronizar pesos e medidas, antecipando-se ao MJ? Como determinar qual o tamanho (e peso, portanto) de uma caixa, um pacote ou pote, uma vez que há uma infinidade de possibilidades no mercado de invólucros?
Resolvido o problema da pesagem de forma mais ou menos precisa, temos os problemas interpretativos, como já discutimos com relação a outros indicadores na área de segurança. A distribuição dos pesos é bastante assimétrica, com poucos casos envolvendo apreensões gigantescas e uma grande quantidade de casos envolvendo pequenas quantidades de drogas.
São Paulo é um dos poucos Estados que estima e divulga entre as estatísticas de produtividade a quantidade de drogas apreendidas pelas polícias em cada ocorrência, em gramas, por tipo de droga.
A média é altamente inflacionada pela existência de algumas dezenas de grandes apreensões. Nestes casos é preciso usar a mediana ou algum estimador de média que exclua os casos extremos, como M de Huber. Usar a média é produzir uma visão bastante equivocada do problema. Em média, cada ocorrência envolvendo cocaína implicou na apreensão de aproximadamente 1 quilo da droga… enquanto a mediana nos mostra 29g e o M de Huber 35g.
A base de São Paulo, com 130.795 Bos, permite inferir, por exemplo, que no ano passado 57,3% das apreensões de cocaína envolveram até 40 gramas de drogas apreendidas, ocorrendo o mesmo com 75,2% das apreensões de crack, 51,1% das apreensões de maconha e 65,5% das apreensões de outras drogas. Em suma, muitos casos com pouca droga e poucos com muita. Trata-se de informação relevante do ponto de vista da política pública, quando se procura estabelecer critérios “objetivos” para a distinção entre usuários e traficantes.
É possível e desejável, portanto, melhorar este sistema de registro das polícias estaduais – começando pela criação de preenchimento com máscaras (permitindo apenas campos numéricos para descrever quantidades) e tabelas pré-definidas de preenchimento, em vez de usar campos abertos, que admitem quaisquer variações das mesmas palavras. Estabelecer uma média ou mediana de quanto pesa em gramas um cigarro de maconha ou um pino de cocaína. Coletar junto aos suspeitos dados sobre o valor das drogas.
Mas, ao final, é preciso se perguntar se não estamos pedindo ao BO informações além das que ele pode fornecer com um mínimo de qualidade. Vale a pena investir no refinamento desta coleta ou é melhor buscar estas informações em outras fontes, como laudos e estudos específicos?
Muitas informações sobre crimes são obtidas apenas depois que a investigação tem início, com a coleta de provas, dados periciais, oitiva de testemunhas. É o caso da “motivação” dos homicídios, que quando (raramente) aparece, é só nas etapas finais. Do uso de álcool ou drogas pelas vítimas e suspeitos, coletados nos laudos toxicológicos. Da “causa mortis”, em mortes dúbias. BO não é fonte boa para estas informações.
Talvez um próximo passo para a obtenção deste tipo de informação seja integrar as bases de Boletins de Ocorrência com as bases de laudos da Polícia Científica, de Inquéritos do Ministério Público, de sentenças da Justiça, de execuções da pena do sistema Carcerário. Nos anos 1980, em São Paulo – quando computadores, softwares e programadores eram caríssimos e exclusivos de algumas poucas instituições – como a Prodesp –, o sistema de informações criminais nasceu integrando as informações destes diversos órgãos, apesar da cultura de supressão de informações interinstitucional.
O barateamento de computadores, programas e programadores teve como externalidade negativa a separações das bases de dados do sistema de justiça criminal. São poucos os Estados onde é possível acompanhar um suspeito de crime desde o momento em que ele é abordado pela Polícia Militar até o momento em que cumpriu sua pena no sistema prisional ou é atendido em um programa para egressos. Neste percurso, um indivíduo percorre diversas bases de dados – chamados do Copom, Boletim de Ocorrência, laudos da Polícia Técnica, base fotográfica, base de DNA, Inquérito no MP, decisões da Justiça, bases do sistema penitenciário, base do programa de egressos etc. O pulo do gato está em conseguir unir estas diversas bases.
Estas inciativas não são incompatíveis e é possível, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o sistema de coleta das polícias, integrar as bases policiais com as bases dos outros órgãos do sistema de justiça e financiar pesquisas ad hoc sobre temas de interesse não cobertos adequadamente pelos dados administrativos. É preciso saber pedir de cada fonte, com suas características próprias, aquilo que elas podem oferecer!
O registro policial traz sempre o dado do “calor da hora”, muitas vezes impreciso, pelas condições em que são coletados. Seja para fins de investigação ou para traçar boas políticas públicas para a prevenção e repressão às drogas, é preciso complementá-los com dados coletados “no frio dos anos”.
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