Samuel Hanam, coordenador do Conselho Temático sobre Pacto Federativo e Tributação do Espaço Democrático e ex-vice governador do Amazonas.
Edição: Scriptum
O Brasil é frequentemente citado como um país de memória curta. Colecionamos razões para esta pecha, da qual a nação não consegue se desvencilhar. Escândalos históricos se dissipam rapidamente na mente de nosso povo e os agentes públicos envolvidos em malfeitos com o dinheiro público voltam a se eleger em pouco tempo, como se nada tivesse acontecido.
Este fenômeno é antigo, porém persiste apesar da consolidação da democracia e do dito amadurecimento político da população. Exemplo mais recente desse comportamento nacional é a Operação Lava-Jato, deflagrada em 2014 e considerada a mais significativa ação contra a corrupção da história do Brasil e uma das maiores do mundo.
Até 2018, os brasileiros tinham a certeza de que a Lava-Jato desvendara o maior esquema de corrupção nacional, envolvendo a maior empresa estatal do País, a Petrobras, agentes públicos, operadores do mercado financeiro e empreiteiras. Revelou-se o pagamento de propinas no valor de 1% a 5% de contratos bilionários superfaturados, movimentando fortunas ao longo de anos.
Os números não deixam dúvidas sobre o gigantismo e o resultado da operação do Ministério Público Federal, que ocupou por anos as manchetes da mídia e teve repercussão internacional. As 79 operações deflagradas desde 2014 resultaram em mais de 550 pessoas denunciadas à Justiça, mais de 174 condenações – algumas posteriormente anuladas –-, 140 acordos de delação premiada – homologados pelo Supremo Tribunal Federal – e 17 acordos de leniência firmados com empresas envolvidas no escândalo.
Nada menos do que R$ 4,7 bilhões foram devolvidos à Petrobras e à União. Houve mais R$ 2,1 bilhões pagos em multas compensatórias, cujo total deve chegar a R$ 12,7 bilhões em razão dos acordos de leniência. Outros R$ 14,7 bilhões estão previstos em reparações. Isso totaliza R$ 34,2 bilhões, valor que ainda será acrescido de correção pelo índice inflacionário definido pelo Judiciário ou pelo Tribunal de Contas da União.
Pela primeira vez na história brasileira foram presos empresários, donos de grandes empreiteiras, acostumados a ganhar as concorrências das maiores obras públicas. Muitos deles fizeram acordo de delação premiada, confessaram suas ações como corruptores, detalharam suas operações ilegais, apontaram os corruptos que receberam propina e concordaram em devolver aos cofres públicos parte do que foi desviado por meio do superfaturamento nos contratos.
Dos processos resultantes da Lava-Jato, parte foi anulada por questões processuais e uma parcela menor foi extinta em razão de prescrição. Não se trata, portanto, de um atestado de inocência porque nos casos de prescrição não houve análise do mérito, enquanto os processos anulados voltaram às fases iniciais no Judiciário, muitos agora em outros tribunais. É evidente que até a realização dos novos julgamentos outros crimes comprovados pela Lava-Jato prescreverão. Além disso, faltando apenas oito meses para as eleições, não haverá tempo hábil para que a Justiça dê novas sentenças e, assim, muitos dos acusados – tecnicamente ainda fichas-limpas – poderão concorrer a cargos públicos, inclusive aos mesmos postos que ocupavam por ocasião dos escândalos de corrupção.
A questão é que, passado pouquíssimo tempo, a partir de 2020 o Brasil começou a viver um fenômeno extraordinário, um novo tipo de corrupção no qual existem os corruptores enriquecendo com vantagens indevidas, porém não existem os corruptos, ou seja, aqueles que recebem propina para viabilizar as falcatruas. Mágica? Cegueira seletiva?
Em 2021 o quadro tornou-se ainda pior, com a sensação de que, de repente, apenas algumas pessoas são corruptas e responsáveis pelo maior escândalo de corrupção deste País. Indivíduos que, juntos, não lotariam um carro médio. E ninguém mais.
Todo o resto parece ter desaparecido de repente, como se os bilhões devolvidos aos cofres públicos não fossem provas de nada ou talvez sejam fruto da bondade dos empreiteiros em repentino ato de benevolência patriótica. É uma espécie de aceitação – ampla, geral, irrestrita e absurda – da ideia de que, por exemplo, é possível a infidelidade conjugal sem amante. A fantasia está mascarando a realidade.
Cabe lembrar o que disse o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto no julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal de Justiça no julgamento da suspeição do ex-juiz federal Sérgio Moro no processo envolvendo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e o triplex do Guarujá: “Na Itália, a corrupção conquistou a impunidade. Aqui, entre nós, ela quer vingança. Quer ir atrás dos procuradores e juízes que ousaram enfrentá-la. Para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo. No Brasil, hoje, temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas temos um lote muito pior, dos que não querem ficar honestos nem daqui para a frente, e que gostariam que tudo continuasse como sempre foi”. A suspeição acabou confirmada por 7 votos a 4, mas o voto vencido do ministro Barroso deixou uma reflexão ainda muito válida, porque permanece atual.
Se estamos vivendo um torpor coletivo, uma amnésia geral, um devaneio absolutório, precisamos de ajuda médica urgente. Sem isso, o vírus da corrupção tomará conta de vez de todo o organismo nacional, enquanto fingimos acreditar que era só uma gripezinha e que ela já passou.
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