José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Dentro de cada cidade há duas cidades. Uma feita de arquitetura, museus antigos, museus do presente (supermercados), igrejas, praças, rios, mares. Carlos Pena Filho até diz isso (em Olinda) com extrema beleza.
Olinda é só para os olhos.
Não se apalpa é só desejo.
Ninguém diz é lá que eu moro.
Diz somente é lá que eu vejo.
Só que, por dentro desta cidade dos cartões postais, há uma outra cidade feita de gente. E o mesmo ocorre com os homens. Que, em cada um, há dois. O primeiro com medalhas, currículos, cargos, o poder; enquanto, dentro dele, habita um homem comum que sofre as injustiças do mundo, chora, sonha, tem esperanças. Trata-se do “homem interior”, a que se refere Dom Tolentino quando cita Santo Agostinho (em De vera religione).
O cardeal Dom José Tolentino Mendonça foi distinguido como Doutor Honoris Causa em 25 de janeiro, pela Universidade Católica de Pernambuco. Suas numerosas honrarias e seus mais de 50 livros publicados foram apresentados, ao público, na cerimônia. E estão, na internet, à disposição de quem queira saber. Mas, intimamente, quem será ele?, eis a questão. Para responder lembro livro curioso, editado em 2014 pelo Prêmio Nobel de Literatura (em 1971) Pablo Neruda, El libro de las preguntas. Em que primeiro anuncia palavras e, depois, discorre sobre o tema. Nesse caminho, escolhi apenas 20. E vejamos o que Dom Tolentino diz sobre elas. Para conhecer melhor esse homem enorme que, agora, honra também nossa terra.
Brinquedos. Numa caixa de brinquedos estão as histórias disparatadas e sábias que contamos pela vida fora, a primeira bicicleta, os livros que nos ofereceram quando ainda não sabíamos ler, o silêncio da intimidade, as conversas à janela voltadas para a noite. Nessa caixa está a arte de fazer tempo e de perdê-lo, para que se torne mais nosso.
Caminhos. Ensina-nos, Senhor, a olhar com humildade e a reconhecer, como um caminho que deve ser percorrido, o áspero acúmulo de ruínas. Esse caminho, que o homem moderno se descobre a percorrer, Eliot alumia-nos com uma esperançosa pergunta: “Quem é o terceiro que caminha sempre ao teu lado? Quando conto, só vejo nós dois; mas quando olho adiante na estrada branca, há sempre outro caminhando ao teu lado.”
Choro. Devemos chorar sem permanecer no pranto, a fazer o luto sem enlutar demasiado tempo o coração, a visitar as nossas feridas sem perder a esperança.
Cozinha. Pensar uma casa a partir da cozinha em nada atenta contra a sua natureza sagrada. Há uma compreensão que se abre para aquilo que uma casa significa, como se assim tocássemos o seu segredo.
Eternidade. Este sentimento de eternidade não consiste numa duração contínua, num tempo ininterrupto. Colhe-se no sentimento de que a vida é atravessada por alguma coisa, por uma alegria que emerge pela pura e simples sensação de estarmos vivos.
Ética. A ética e a liberdade não têm a ver com a vontade, nem com as ações que dependem de nós, mas sim com o conhecimento e a possibilidade de conhecer. O ser humano é livre na medida em que conhece. A ética, em síntese, é a capacidade de reconhecer o que nos move uma experiência de abandono ou uma presença amorosa; um vazio que gera carência ou uma plenitude; uma força que expande ou um medo que lhe tolhe.
Férias. Que aproveitemos o tempo das férias para prolongar o tempo: o tempo das conversas, o tempo dos encontros, o tempo à volta da mesa, o tempo da leitura, o tempo dedicado à alegria, o tempo da contemplação, o tempo do cuidado.
Futuro. Ensina-nos a divisar futuros onde os olhos só avistam entraves ou escombros e a acreditar que um fogo subsiste debaixo das cinzas.
História. A história nos parece indiferente ao que possamos fazer. Vale a pena avaliar o tempo, o que fazemos dele e o que ele faz de nós.
Mãe. Falar da mãe é tocar alguma coisa ardentemente intransmissível, mas que permite aceder a um patrimônio que todos podemos reconhecer nosso.
Morte. Na sociedade da imagem a morte torna-se sempre mais invisível e anônima. A única descrição que se consente é do boletim clínico, que diz tudo e não diz nada daquilo que a morte efetivamente é. Conta-se que na Roma antiga, quando os vitoriosos festejavam e eram publicamente festejados por uma conquista significativa, um escravo recebia o encargo de lhes repetir ao ouvido: “Memento Mori!” (uma saudação dos trapistas, algo como lembra-te de que um dia vais morrer).
Natureza. O destino do homem não pode ser separado do destino da natureza. Em vez de senhores despóticos, precisamos ser cuidadores sensatos nos estilos de vida, nas escolhas, nas expressões mais domésticas do quotidiano.
Palavras. Minha avó materna era analfabeta e foi ela minha primeira biblioteca (a literatura oral). Ensina-nos, Senhor, a mansidão das palavras. Que saibamos escolher as palavras que lançam pontes, que deixam portas abertas ao que virá depois, que continuam a favorecer a esperança. Quando as palavras buscarem amparo em teu secreto canto, serás ainda o único pastor do meu silêncio.
Pobreza. A pobreza verdadeira é aceitar que, depois de tudo, o pai do filho pródigo não queria saber porque se parte, ou porque se regressa.
Recomeço. Ensina-nos, Senhor, a esperança dos recomeços, mesmo se mais humildes do que idealizámos e mais ásperos, demorados ou fatigantes A paciência necessária aos recomeços. A arte dos recomeços.
Rezar. A oração não é aquele momento em que consigo libertar-me e fugir. É aquele instante em que o espírito se une à minha fraqueza e dá-me forças para abraçar aquilo que é maior do que eu.
Serenidade. Queremos, Senhor, entregar-Te tudo. O que nos dá serenidade e o que nos inquieta. O que nos encoraja e o que nos fecha no desalento.
Silêncio. Cada um vive a sua vida única, mas também vivemos a de muitos outros e em nome de muitos outros. O silêncio é a partilha do furtivo lume.
Solidão. Devemos aprender, Senhor, não a temer, mas a escutar. Ensina-nos não a omitir, mas a abraçar a curva da solidão.
Vida. A vida é mais do que a tua casa, do que o trabalho, a vida é mais. Fernando Pessoa dizia que nós não medimos a nossa altura, somos da altura daquilo que vemos – e a coisa mais importante na vida é ter uma visão. Não é só viver, é ter percebido o que é a vida. E essa visão só se consegue quando tiramos os olhos dos nossos sapatos e olhamos para a lua.
Sábias palavras ditas por um grande homem, essa visão da vida que só se consegue quando tiramos os olhos dos nossos sapatos e olhamos para a lua. Quando tiramos os olhos do pequeno e buscamos o soberbo. Quando tiramos os olhos do barro trágico e olhamos para o céu estrelado. Quando abandonamos as ilusões perdidas e sonhamos sonhos radiosos.
Para encerrar, lembro que Dom Tolentino tomou posse como cardeal (em 15/12/2019), no Vaticano. E, dia seguinte, ofereceu almoço aos amigos que lá estiveram. Preparei discurso a partir do fato de que, naquele tempo, o Flamengo era treinado por um português, Jorge de Jesus, endeusado por todos. E esse discurso, que ainda vale em nossos corações, encerrava assim:
No Brasil, hoje, (Jorge de) Jesus é Deus. Os amigos de Dom Tolentino são bem mais modestos. Não querem que ele seja Jesus nem, muito menos, Deus. Para nós, basta que um dia ele seja Papa.
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