José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Mais conversas, nas vésperas do São João, hoje só com cantadores e afins, em livro que estou escrevendo. Parte, apenas, o restante ficou para a próxima semana, vésperas de São Pedro.
Câmara Cascudo, escritor. É dele essa bela definição, “o melhor do Brasil é o brasileiro” (dita em conversa com Diógenes da Cunha Lima, que a registrou em Um brasileiro feliz). No terraço de sua casa na rua Junqueira Aires (bairro da Ribeira, Natal), próxima da Praça das Mães, dois cantadores esperavam para se apresentar. Foi quando um deles viu besouro cascudo pousar nos ombros do mestre e pegou na viola
– Estou vendo dois cascudos
Um do outro é diferente
Um não tem raciocínio
O outro é inteligente
No mato cascudo é bicho
Na praça Cascudo é gente
* * *
Geraldo Amâncio Pereira, cantador (de Cedro, Ceará). Numa cantoria disse
‒ A viola que desafina agora
É com ela que luto com os poetas
Com viola eu sustento duas netas
Meus três filhos, meu genro e minha nora.
A mulher que me ama e me adora
Se alimenta também de cantoria
O meu pai, minha mãe, e minha tia
Tudo isso a viola é quem sustenta
Que viola é a minha ferramenta
E repente é o meu pão de cada dia
* * *
No Restaurante as Velhas (Lisboa), o professor António de Abreu Freire (de Aveiro) queria enviar mensagem para ele. Filmei no celular e mandamos. Resposta
‒ Nosso poliglota Freire
Muitos favores me fez
Nessas questões de idiomas
Fala em oito, escreve em seis
E eu semianalfabeto
Mal arranho o português.
* * *
Dá boca pra fora. Que é membro da Academia Cearense de Letras, a mais antiga do Brasil (criada em 15/8/1894). Antes mesmo da Brasileira (20/7/1897); e terceira, só para lembrar, é a de Pernambuco (26/1/1901).
Numa conversa, o chamei de gênio. E ele respondeu
‒ Tem G em Geraldo e gênio
Tudo começa com G
Escolho o G de Geraldo
G de gênio é prá você.
* * *
Ivanildo Vilanova, cantador (de Caruaru, Pernambuco). Com muita honra, para mim, sou padrinho de uma de suas duas filhas, Indira Essênia. Decidiram gravar um disco, Violas de ouro, ele e Geraldo Amâncio Pereira. Duas lendas, na cantoria. E pediram que escrevesse a contracapa, uma honra. Como estavam brigados por muitos anos, dei os parabéns
‒ Ainda bem que fizeram as pazes.
E Ivanildo
‒ É que já estava na hora, doutor, de desatar o nó dessa desunião.
É dele essa Cantiga de Conselho
‒ Você pode no muque arrebentar
Seja a porta da frente, ou da dispensa
Mas apenas pedindo com licença
Ela pode se abrir, você passar.
Me perdoe diga sempre quando errar
Não é feio ninguém ser educado
Nem humilde, gentil ou delicado
O contrário é que é constrangedor
Por favor diga sempre por favor
E obrigado por dar muito obrigado
* * *
João Furiba (João Batista Bernardo), cantador (de Taquaritinga do Norte, Pernambuco). Cantando com Lourival Batista, Furiba começou
‒ Meu colega Lourival
Acho que já vou embora
Já é quase meia-noite
Breve vai dar zero hora
E eu não quero dar maçada
Na mulher que me adora.
Louro foi em cima
‒ Furiba não vai agora
Com essa garota sua
Pois lá fora tem malandro
Que mexe até com a lua
Carrega ela e lhe deixa
Vagando só pela rua.
Para ver, desalentado, Furiba completar
‒ Mais perigoso é a sua
Ficar em casa sozinha
Você entra pela sala
Outro sai pela cozinha
Eu pra não correr perigo
Pra onde vou levo a minha.
* * *
João Paraibano, cantador (do Sítio Pinica-Pau em Princesa Isabel, Paraíba). Fazia cantoria com Rogério Menezes (de Imaculada, Paraíba, embora tenha desde menino vivido em Caruaru) quando um cidadão botou dinheiro na bandeja e pediu que falassem mal das esposas, um do outro. Com as próprias presentes! João não se fez de rogado e acabou sextilha dizendo
‒ Não sei como tu aguentas
Uma mulher braba e feia.
Rogério respondeu
‒ A minha mulher é feia
Porém digna e singela
Sua mulher é bonita
Entre todas a mais bela
Por isso que muitos ursos
Estão pulando a janela.
E João
‒ A minha mulher é bela
Estando vestida ou nua
Mais parece uma sereia
Quando desfila na rua
Melhor ser corno da minha
Do que marido da tua.
* * *
Lourival Batista (Louro do Pajeú), cantador (de São José do Egito, Pernambuco). Numa cantoria deram mote, mulher, que cantou assim
‒ Um cientista profundo
Me perguntou certa vez
Se eu conhecia os três
Desmantelos deste mundo.
Eu respondi num segundo
Doido, mulher e ladrão
E disse mais a razão
Doido não tem paciência,
Ladrão não tem consciência,
Mulher não tem coração.
* * *
Luiz Berto, escritor. Funcionário concursado na Câmara dos Deputados (Brasília), e mais conhecido como Papa Berto (por ter criado uma igreja imaginária, a Católica Apostólica Sertaneja ‒ CAS, onde nomeia os amigos padres, bispos e cardeais). Numa sexta-feira, foi procurado por Orlando Tejo (autor de Zé Limeira, o poeta do absurdo), que estourou seu cheque especial e a Caixa Econômica deu até segunda para cobrir. Precisava de um agiota. Berto o pôs em contato com João Canindé Tolentino Ribeiro. Tejo disse quanto precisava e foi mais tarde, ao apartamento de Berto, para saber se o dinheiro havia chegado. Informado que não, pegou num papel e escreveu na hora (gênio é isso) essa Louvação a Canindé. Seguem, para ideia, só duas de suas oito décimas
– Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse Meu Irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.
O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinquente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.
Assim que acabou, enorme coincidência, toca o telefone. Era Canindé informando, a Berto, que seu amigo podia ir buscar a grana. Foi quando Tejo pediu outro papel e, também na hora, escreveu Nosso amigo Canindé. Seguem mais duas (das oito) décimas
– Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores…
Haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.
Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem?, Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.
Após o que foi-se Tejo embora, feliz. Berto juntou aqueles papéis e guardou, pensando na posteridade. Fez bem.
* * *
Luiz Gonzaga, compositor, cantor e no Nordeste quase Deus. Eveready (a pilha do gato) pediu que fizesse um gingle para sua marca. História contada por ele mesmo a Santana Cantador, no terraço do apartamento no edifício Cerejeira (pertencente a sua segunda mulher, Edelzuita Rabelo, de São José do Egito). Lembrou que um cantador lhe disse não ter, a palavra “lâmpada”, rima em nossa língua. Para ele, um desafio. Então usou na propaganda música sua, Vida de Vaqueiro, com outra letra
‒ Pilha Eveready, pilha Eveready
Pilha Eveready minha luz, minha alegria
Com minha lâmpada, com minha lâmpada,
Eu vejo a estampa da
Estrela de Maria.
Mais tarde o compositor Belchior, ao ouvir essa história, lembrou ao mesmo Santana que o poeta português João de Deus (1830-1896 ‒ anterior, portanto, a Gonzaga) já havia utilizado essa rima. Longe disso, meus senhores. Que João de Deus, em Lágrimas de um homem, nem chegou perto de Gonzagão. Basta comparar
‒ De que serve o meu pranto, a minha dor
Se a lâmpada da esperança se apagou
A lembrança do teu rosto, meu amor
Causa-me um sofrimento que não afago.
* * *
Manoel Emerenciano, advogado. Num aniversário, me deu gravata nas cores do Sport (e não do Náutico, como deveria). Agradeci num bilhete
– Mané Emerenciano
Recebi o seu presente
Que julguei impertinente
Porque na cor houve engano.
Assim nesse fim de ano
Quando outra me mandar
Vermelho melhor deixar
Mas o preto por favor
Tire logo e pode pôr
O branco no seu lugar.
* * *
Maria Lectícia, esposa. Escrevi 244 páginas de versos para um disco (Ivanildo Vilanova e Oliveira de Panelas cantam Cantorias de Pé de Parede, com versos de José Paulo Cavalcanti), selo Polydisc. Naquele ano, um dos dez mais vendidos em Pernambuco, evoé! Nele, a faixa As coisas que eu gosto de fazer. Mais um martelo que virou gênero, como O que é que me falta fazer mais ou Perguntei em martelo agalopado, e quem responde em martelo é campeão. Adaptação de Jorge Macedo, cantador do Ceará. Trata-se de décima em decassílabo onde um cantador canta as coisas que aprecia, findando com o mote São as coisas que eu gosto de fazer; e o outro, ao contrário, canta o que não lhe agrada, findando com o mote São as coisas que eu faço sem gostar. Nele, estão esses versos que escrevi para dona Lectícia
Eu ficava querendo um dia ver-te
Quando um dia te vendo eu me perdi
Em teu rosto afinal compreendi
Que a vida só vale para ter-te.
E o pecado tão doce de querer-te
Não permite que eu possa te esquecer
Em teus braços me entrego por saber
Que tu’alma será um dia minha
Para sempre serás minha rainha
São as coisas que eu gosto de fazer.
Na manhã radiosa desse dia
Pelo qual sem saber sempre esperei
Pressenti que te tendo eu não terei
A tristeza que o peito pressentia.
E que eras tu mesma eu já sabia
Sem que fosse preciso nem dizer
Porque sempre sonhei que iria ver
Teu sorriso sorrindo para mim
E eu sorrindo a teu lado até o fim
São as coisas que eu gosto de fazer.
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