José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Lisboa. Mais conversas, hoje só com médicos e afins, em livro que estou escrevendo (título do artigo).
Ana Vasconcelos, advogada. O médico olhou para ela com olhos de pena
‒ Você tem câncer, Ana.
‒ Qual o tratamento?
‒ Nenhum, infelizmente.
Decidiu ir a São Paulo e foi confirmado, esse diagnóstico, por junta com mais quatro médicos. Melhor voltar e morrer no Recife. Só que não conseguia suportar essa espera e decidiu abreviar sua história. Melhor o fim do espanto que um espanto sem fim. Como não tinha coragem para se jogar de um edifício, ou dar tiro na cabeça, escolheu fazer isso dentro de seu carro. Entre segunda e terça, madrugada (sem ninguém na rua para ser atropelado), em reta que começava na Ponte Giratória e findava em muro de concreto grosso, da Marinha, no Porto do Recife. Lugar perfeito para um acidente automobilístico. Deu uma última olhada para o “Capibaribe, meu rio,/ Espelho de meu sonhar” de Austro Costa, fez o sinal de cruz e acelerou seu velho Gol até chegar na velocidade máxima. Os braços, ao segurar o volante que tremia, estavam já dormentes (foi quando teve a sensação de que morreria sem dores). E viu aquele muro se aproximar. Faltava pouco. Só que um pneu voou e o carro começou a dar voltas. Sem capotar, sorte dela. Até que parou. Saiu, era inacreditável, estava de frente para o tal muro, a menos de um palmo. Então pensou
‒ É coisa de Deus. Ele não quer que eu morra e me trouxe aqui para dizer qual missão reservou para mim.
Olhou em volta e viu que, ali, havia só marinheiros e mulheres tentando sobreviver. Seu público não seriam aqueles homens, com certeza. Decidiu criar uma instituição memorável, a Casa de Passagem – dedicada a abrigar, proteger e ensinar ofícios dignos a prostitutas que eram depois colocadas no mercado de trabalho. E Ana bem, sem mais notícias do tal câncer, enquanto começaram a morrer os médicos que deram aquele diagnóstico. Na última vez que a vi disse, brincando,
‒ Ainda não morreu?, amiga.
‒ Que nada, Zé Paulo, e já decidi, só morro depois de enterrar os cinco médicos que me condenaram.
‒ Até agora…
‒ Quatro já foram, só falta um.
Ana morreu só bem mais tarde (em 2009), aos 64 anos, vítima de um infarto fulminante. Descanse em paz.
Antônio Mota Barbosa, professor de patologia geral (genética). Na Faculdade de Medicina UFPE (Recife), dava aula no necrotério. E dirigiu-se aos alunos
‒ Esse é um teste para ver se vocês têm compromisso real com a medicina.
Foi dizer e enfiar o dedo indicador no pulmão aberto do cadáver, após o que pôs na própria boca, assim como estava, cheio de sangue
‒ Agora quero ver quantos serão capazes de fazer isso.
Metade da classe foi embora, na hora, enquanto a outra metade repetiu seu gesto. E ele
‒ Estou vendo que o compromisso com a medicina de vocês, que ficaram, é mesmo real. Porque o dedo que enfiei no cadáver, e veio sujo com sangue, era o indicador; e o que pus na boca foi outro, o dedo médio.
Carlos Roberto Moraes, cirurgião cardíaco. Perguntou
– Quantos charutos você fuma?, por dia.
– Só um. Mas todo charuteiro mente muito.
José Cunha Filho (Rato), construtor. Sua santa mulher, Ana Lúcia (Iuca), pede que vá ver o médico. Depois de muita insistência, ele afinal consente. E, ao entrar na sala, Rato
– Doutor, o senhor tem direito a uma pergunta.
Espantado com frase tão insólita, e vendo a desgraça dos exames na sua frente, o médico
– Dr. Rato, o senhor já comprou seu jazigo?
José Sarney, presidente da República. Estávamos na ABL. Como esbanjava saúde, Flora Gil não resistiu
‒ Presidente, que cara boa!
‒ Minha filha, quem vê cara não vê radiografia.
Moacyr Guimarães, funcionário público, pai do médico André Valença. Quando fazia visitas, em dado momento, dizia sempre ao dono da casa
‒ Já comi
Já bebi
Nada mais
Me prende aqui.
E ia embora.
Odacírio da Telha, empresário. Caruaru, na época da Segunda Guerra. Marcou viagem ao Recife, de trem, para o dia seguinte. Seu Teixeira (história contada pelo filho Marcelo) pediu
– Pode levar encomenda?
– Claro, compadre.
– Entrego na hora do embarque.
Manhã cedo e lá estava seu Teixeira, na estação, com a encomenda. Era um doido. Que, depois de férias com a família, tinha que ser devolvido à Tamarineira – único hospício então funcionando em Pernambuco. No bolso de sua camisa, pôs dinheiro para qualquer necessidade. Perto do meio-dia, o trem chegou em Vitória de Santo Antão. Todos saltaram para almoçar. Problema é que o doido dormia pesado, foi bomba demais que tomou, algum antecedente do Rivotril. E Odacírio teve que ficar no vagão, com calor e fome; para evitar que ele, acaso acordasse, pudesse fugir. Fim da tarde, chegam à Estação Central do Recife. Junto da penitenciária (hoje, Casa da Cultura). Foi quando soube que a Tamarineira ficava longe. Teve que gastar dinheiro, o que era contra seus princípios, com carro de praça. Chegou irado. Com o doido acordado, sem mais efeitos dos remédios que tomou. Entraram. Odacírio entregou o doido. Pretendeu entregar, melhor dizendo. E o Diretor
– Qual o nome do paciente?
– Sei não (seu Teixeira esqueceu de dizer).
– O que ele tem?
– Não tenho a menor ideia.
Problema é que o doido olhava para o diretor, pelas costas de Odacírio, fazendo gestos com o dedo rodando na orelha, e apontando, como que dizendo ser ele o maluco. Afora outros gestos, agora com as duas mãos, sugerindo levar o homem para dentro. O diretor veio falar com ele
– Seu nome é?
– Odacírio da Telha, a seu serviço, trabalho em Caruaru no ramo de tijolos e telhas.
– O nome do paciente?
Deu seu próprio nome. E completou
– Ele já tem ficha, é só o senhor conferir.
O diretor fez isso. Voltou com ela na mão. E, para confirmar, perguntou a doença
– Transtorno de Bukovsky, um tipo especial de esquizofrenia delirante.
Era fácil, para ele, que (quase) todo maluco sabe o mal que tem. Ele, pelo menos, sabia. O diretor mandou levar Odacírio para sua cela (a que era do doido). E este, indignado, resistiu bravamente. Foi necessário recorrer a uma camisa de força. O diretor
– Seu Odacírio, pode ficar tranquilo que o paciente será muito bem tratado.
– Obrigado. E até a próxima.
O azar de Odacírio é que o doido tinha um sonho, ou mania, ou delírio, de ir ao cinema Coliseu que ficava bem pertinho dali. Agora, estava solto e com dinheiro para isso, aquele posto no bolso da camisa. Foi, pagou a entrada, com o troco ainda comprou pipoca e assistiu, satisfeito, ao filme do dia. No fim, um problema, onde iria dormir? Então voltou à Tamarineira, explicou o ocorrido e pediu sua cela de volta. Foi a sorte de Odacírio.
Oscar Coutinho, clínico geral. Comentei matéria segundo a qual “fazer exercício traz riscos para a saúde”. Respondeu, brincando,
‒ Verdade. Muitos enfartam ao andar no Parque da Jaqueira (Recife), mas nunca vi ninguém morrendo em mesa de bar.
Planos de saúde. Liga para mim alguém, não sei quem seria, e pergunta
‒ Aqui é o gerente do plano de Saúde… qual é o nome do senhor?
‒ Esqueci.
E desliguei
Reinaldo Oliveira, cirurgião (e artista consagrado no Teatro de Amadores de Pernambuco). Tinha que dar um depoimento, sobre ele, para a televisão. E fiz isso, na hora
‒ Reinaldo é nosso rei
Ele nos dá seu perdão
Manda em nosso coração
E faz o que não farei
Pensa o que nunca pensei
Ele diz o que não digo
Ele canta eu não consigo
Ele solto é um perigo
Só faltou o Oliveira
Essa fé tão brasileira
E o abraço mais amigo.
Silvia Laurentino, PHD em Neurociência. Fim de conferência na Academia Pernambucana de Letras, sobre a Memória, e levanta-se o engenheiro Salmen Giske
‒ Tenho uma pergunta importante para a senhora.
‒ Pois não.
E ele, depois de algum tempo em silêncio,
‒ Esqueci.
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