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{ ARTIGO }

Criações espúrias ou ancoradas na realidade?

As diferentes regiões do Brasil podem ter conceitos relevantes para entender a realidade criminal, defende o sociólogo Tulio Kahn

 

 

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição: Scriptum

 

Há algum ganho heurístico em apresentar os crimes nacionais agregados por grandes regiões, como “Nordeste” ou “Sul” etc?

Para alguns tipos de análise o uso das regiões administrativas (por exemplo, municípios, bairros, setores censitários etc) pode significar meras abstrações, que alguém traçou arbitrariamente para facilitar o gerenciamento do espaço. Elas teriam uma existência jurídica ou administrativa, mas sem qualquer substrato real que as homogeneízem.

Outras vezes, porém, as regiões administrativas podem ser úteis para a compreensão dos fenômenos analisados. Este parece ser o caso das grandes regiões brasileiras, ao menos com respeito a algumas naturezas criminais.

As regiões compartilham internamente características demográficas e socioeconômicas comuns e a criminalidade tem relação estreita com algumas destas características. A primeira Lei da Geografia de Tobler é que as áreas próximas tendem a ser mais similares em “valores” do que as áreas distantes e essa lei se aplica tanto aos fatores demográficos e socioeconômicos quanto aos fatores criminais.

Existem, é claro, os outliers, como é o caso do Distrito Federal, no centro-oeste, criado artificialmente nos anos 1960 para ser a capital do País. As características de renda, escolaridade e idade do DF são em geral bem diferentes do centro-oeste. E existem os Estados situados nas zonas de transição, que ora comungam com as características de sua própria região, ora com a região vizinha. Mas, ainda assim, parece existir alguma utilidade heurística na análise regional dos crimes. A hipótese é que existe heterogeneidade nas taxas criminais e esta heterogeneidade segue um padrão regional. Em outras palavras, que existem regimes espaciais¹ no Brasil, de modo que certas regiões podem ser estruturalmente diferentes de outras, com relação a determinados crimes.

Nem sempre estes regimes espaciais são visíveis quando elaboramos mapas de taxas criminais cruas (taxas por habitante) de modo que para ressaltar a existência das regiões calculamos aqui as taxas espaciais (Spatial Rates) que são uma forma de “suavizar” os dados, tomando as médias regionais. Assim, a taxa crua de cada Estado é ponderada por uma taxa de referência regional, uma estratégia para ressaltar a existência de regimes espaciais e de padrões gerais, a despeito de valores particularmente altos ou baixos.

Trata-se de um recurso estatístico legítimo, assim como na análise de regressão a retirada de casos muito influentes (outliers) ou transformar variáveis nos seus logaritmos para linearizar uma relação que não é linear. Ou usar médias móveis para suavizar oscilações nas séries temporais. E o que são os tipos-ideais webberianos, se não “estilizações” que ressaltam traços típicos, que não necessariamente correspondem a exemplos históricos reais? Em suma, a ciência trabalha com modelos da realidade, para ressaltar estes traços que importam, às vezes invisíveis a olho nu.

Nos mapas abaixo vemos, na primeira linha, as taxas espaciais calculadas no software Geoda, de homicídios dolosos (à esquerda) e furto de veículos (à direita), divididas em quartis. Estamos utilizando dados acumulados entre 2015 e 2022 para conseguir médias mais estáveis e a fonte é o sistema SINESP do Ministério da Justiça – (sistema que ajudei a desenvolver em 2002, quando o chamávamos de SINEP).

Para ressaltar ainda mais os padrões regionais e identificar agrupamentos (clusters) espaciais, na segunda linha trazemos os LISA Maps (Local Indicator of Spatial Association) de homicídios dolosos e furto de veículos, calculados com base nas taxas espaciais (SR Spatial Rates).

Como é possível discernir nos mapas choropléticos, apesar de algumas inconsistências estaduais, as grandes regiões são visualizáveis nos mapas. Note que informações sobre as cinco regiões brasileiras não foram disponibilizadas na base de dados: os mapas foram produzidos levando em conta apenas as taxas estaduais e uma matriz de distância espacial de k vizinhos = 4. Mesmo assim, os diferentes regimes espaciais foram ressaltados e eles se assemelham ao formato das grandes regiões.

Os homicídios dolosos são elevados no Nordeste e Norte, menores no Centro-oeste e parte do Sudeste e baixos no Sul, parte do Centro-oeste e São Paulo. Inversamente, os furtos de veículos são baixos no Nordeste e boa parte do Norte, um pouco menores numa faixa que cobre parte do Centro-oeste e Sudeste e menores no Sul. As coincidências com os limites geográficos das regiões não são absolutas, mas são fortes o bastante para podermos falar em regimes espaciais regionais, pelo menos com relação a estes dois crimes.

Os mapas LISA, por sua vez, confirmam que em quase todo Nordeste temos Estados com taxas elevadas de homicídio, cercados de vizinhos com taxas igualmente elevadas, enquanto no Sudeste e no Sul (incluindo MS) vemos o inverso. Com relação ao furto de veículo, vemos o agrupamento Alto-Alto no Sudeste-Sul, invertendo o padrão Baixo-Baixo do Nordeste.

E há um fenômeno bastante interessante aqui: existe uma clara relação inversa entre os dois fenômenos criminais (r2 = .95), de modo que os Estados com elevada taxa de homicídio tem baixa taxa de furto de veículo e vice versa.

 

 

Este padrão invertido entre taxa de homicídios e de furtos de veículos provavelmente guarda relação com fatores estruturais regionais como renda e demografia, que distingue sobremaneira as regiões brasileiras. A existência destes regimes espaciais reforça, portanto a relevância dos fatores estruturais para a compreensão da criminalidade brasileira, em detrimento das tentativas de explicação baseadas nas dinâmicas das facções criminais.

O ponto é que as grandes regiões brasileiras parecem compartilhar de características distintivas entre si – relacionadas à demografia, economia, cultura, história etc. – e que não são apenas criações arbitrárias feitas pela administração pública. Estas características explicam em parte as diferenças criminais, de modo que regiões podem ser conceitos relevantes para entender a realidade criminal.

 

¹ Spatial regimes are characterized by differing parameter values or functional forms (e.g., crime in certain regions might be structurally different from crime in other regions). Spatial regimes are a form of spatial heterogeneity, which implies structural differences across space. When a variable is characterized by distinct distributions (e.g., with a different mean or variance) for different geographic subregions, these subregions might point to the existence of spatial regimes. https://geodacenter.github.io/glossary.html#smooth

 

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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