Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
O Índice Global do Crime Organizado é uma iniciativa da GI-TOC (The Global Initiative Against Transnational Organized Crime) para tentar mensurar a prevalência e características do crime organizado no mundo por meio de uma pesquisa em 193 países. O índice envolve consulta a mais de 400 especialistas e aborda tópicos como mercados criminais ilícitos (15 mercados), existência e tipos de grupos criminais (5 tipos) e capacidade de resiliência dos países para enfrentar o problema (12 indicadores).
Cada indicador é avaliado por especialistas numa escala de 1 a 10, e a avaliação de um país é feita anonimamente por especialistas diferentes, em duas etapas. A avaliação, posteriormente, é verificada por um grupo regional e finalmente feita uma calibração interna por membro do GI-TOC. Trata-se do “método dos juízes”, uma das muitas maneiras de tentar mensurar o crime organizado e que é utilizado no Brasil, por exemplo, pelo SINAPEN, para avaliar as facções criminais no sistema penitenciário brasileiro.
Ainda que sujeito a subjetividade, dada a natureza clandestina das atividades criminosas e a dificuldade de mensurar diretamente o fenômeno, trata-se de uma iniciativa meritória, uma vez que consegue abarcar uma grande quantidade de países e dimensões. Com base nele, é possível correlacionar uma medida de crime organizado com outros fenômenos, como democracia, IDH, variáveis socioeconômicas, taxas de criminalidade comum, transparência e diversas outras características dos países.
Embora seja comum associar a violência letal com o crime organizado, esta associação precisa ser matizada, uma vez que depende bastante do tipo de crime, tipo de grupo criminoso e do contexto de cada local, como a capacidade de resiliência do Estado e da sociedade para lidar com os efeitos deletérios do crime organizado.
A taxa de homicídios em cada país é afetada por múltiplas variáveis – demográficas, culturais, econômicas, sociais etc. – e a existência de mercados ilícitos e grupos organizados é apenas uma dentre muitas. Assim, por exemplo, embora mercados ilícitos e grupos organizados sejam disseminados por todos os continentes, há uma ampla variação da taxa de homicídios entre eles.
As Américas são a região mais violenta do planeta e a Europa, a menos violenta – embora o continente conviva historicamente com diversas formas de crime organizado. Essas diferenças se devem a diversos outros fatores que não são abordados pelo Índice Global do Crime Organizado e sua finalidade tampouco é explicar estas diferenças.
De todo modo, o relatório de 2023 do Índice Global do Crime Organizado procurou investigar algumas conexões entre as taxas de homicídios intencionais e os diversos componentes do índice. Conforme aponta o relatório:
“O crime organizado é frequentemente associado à violência e aos homicídios. Os ambientes com economias ilícitas, como o tráfico de armas e de drogas, são muito propensos à violência, na ausência de forças de segurança e de sistemas judiciais eficazes. Embora permaneça um desafio, dada a amplitude dos dados globais sobre homicídios, as estatísticas mostram uma correlação moderada entre as taxas de homicídio e alguns mercados criminosos, mais notadamente o tráfico de cocaína (0,42) e o tráfico de armas (0,42) e, em menor grau, as taxas de extorsão e proteção ilegal (0,30). Os mercados de homicídios e os criminosos tendem a influenciar-se mutuamente. Os ambientes em que a segurança e o desenvolvimento estão em risco são propícios a economias ilícitas e, na ausência de uma aplicação eficaz da lei e do poder judicial, isto contribui para uma elevada taxa de homicídios. No caso dos mercados de drogas, a falta de segurança tem um efeito prejudicial nas comunidades, criando um ambiente em que não só os indivíduos são mais vulneráveis ao consumo de drogas, mas também permite que os traficantes de drogas operem com impunidade.”
É interessante observar, em primeiro lugar, que muitos dos mercados criminais avaliados não revelaram correlação significativa com os homicídios. A correlação com alguns mercados e grupos foi apenas moderada e, interessantemente, para alguns mercados, a correlação foi negativa. De maneira geral, o relatório encontra apenas uma relação positiva moderada (0.23) entre homicídios e “criminalidade” (indicador agregado do Índice) e uma relação negativa moderada (-0.26) com “resiliência” ou a capacidade do país de resistir às atividades do crime organizado através de medidas políticas, jurídicas, econômicas e sociais.
São bastante raros os estudos e dados para mensurar o fenômeno do crime organizado, especialmente em nível mundial. Não obstante as críticas que se possam fazer à metodologia de pesquisa – subjetividade na avaliação dos especialistas, diferença de qualidade das informações entre os países, ponderação equivalente de mercados desiguais, uso de escalas, ausência de outros mercados ilícitos etc. – trata-se de uma oportunidade importante para investigar a conexão entre o crime organizado e outros eventos, como outras formas de violência.
Crime organizado envolve diversas dimensões e crimes, sendo antes um modus operandi do que uma lista de crimes específicos. Não são todas as atividades nem todos os tipos de grupos que estão associados aos homicídios, mas apenas alguns tipos de atividades e grupos. Sociedades mais funcionais e resilientes têm menores níveis de criminalidade, mas mesmo países com presença de mercados ilícitos e grupos criminosos conseguem às vezes conviver de forma mais pacífica com a existência de mercados ilícitos e grupos criminosos. A Itália é o caso clássico no continente europeu e aqui mesmo na América do Sul temos o ilustrativo caso do Paraguai. Por outro lado, países como México, Honduras ou África do Sul têm taxas de homicídios muitos maiores do que seria esperado pela existência de crime organizado. Estes casos excepcionais são interessantes de analisar, pois permitem compreender melhor a relação entre os fenômenos.
As taxas de homicídio são impactadas por diversas outras variáveis – como qualidade do sistema de justiça criminal, desigualdade, desemprego, tamanho da população jovem nem-nem, taxa de gravidez na adolescência, taxa de escolarização da população, estrutura demográfica e racial, disponibilidade de armas de fogo – para além do crime organizado. Assim, se é importante combater os mercados ilícitos e os grupos criminosos, por todos os motivos, é relevante também pensar em outras políticas públicas, se o objetivo é reduzir as taxas de homicídio.
O Brasil convive desde 2017 com um processo gradativo de redução das taxas de homicídio, não obstante a sensação generalizada de crescimento do crime organizado e o aumento da disponibilidade de armas. Os maiores grupos mafiosos do País – PCC e CV – são oriundos do Sudeste, precisamente a região com as menores taxas de homicídio do País. Esta redução nos homicídios, aparentemente, está relacionada a fatores que vão além da dinâmica entre as facções criminais e suas disputas pelos mercados ilícitos, especialmente de drogas. O artigo corrobora a importância destes fatores sobre a violência letal, mas mostra também que a relação entre os fenômenos é bem mais complexa do que parece a primeira vista.
Referências
Garzón-Vergara, Juan Carlos. What is the relationship between organized crime and homicide in Latin America?. Igarape Institute., 2022.
Índice Global de Crime Organizado. GI-TOC, 2023
Justus, Marcelo, et al. “The “São Paulo Mystery”: The role of the criminal organization PCC in reducing the homicide in 2000s.” EconomiA 19.2 (2018): 201-218.
Kahn, Tulio. Quinze ensaios sobre homicídios
Malby, Steven. “Homicide.” HEUNI (2010): 7.
Van Dijk, Jan. “Mafia markers: assessing organized crime and its impact upon societies.” Trends in organized crime 10 (2007): 39-56.
Van Dijk, Jan, and Toine Spapens. “Transnational organized crime networks.” Handbook of transnational crime and justice (2014): 213-226.
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