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{ ARTIGO }

Crime Organizado: inimigo continua desconhecido

Especialista em segurança, o sociólogo Tulio Kahn elenca estatísticas para dar uma ideia da quantidade de crimes que poderiam ser relacionados às facções que atuam no País 

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático 

 

Edição: Scriptum 

 

Ninguém sabe estimar ao certo a quantidade de crimes relacionados ao crime organizado no Brasil bem como na maioria dos países. Isso se deve em parte à dificuldade em definir o que é crime organizado, que é antes um modus operandi do que uma lista qualquer de crimes. Trata-se de um problema debatido há muitos anos pelos estudiosos da criminalidade e me dediquei ao tema pela primeira vez em 2006, num encontro em Viena para discutir como encontrar “marcadores” de crime organizado, como a saúde faz com algumas patologias. https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Forum/Volume5-2006-E.pdf.

 

Mas nunca se chegou a um consenso sobre quantos e quais seriam estes marcadores, conforme relatei em artigo na Folha de S. Paulo sobre o tema, no mesmo ano1. (Crime Organizado, um inimigo desconhecido, https://feeds.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1307200608.htm) A legislação brasileira, como outras legislações, define-o de forma abrangente tomando algumas destes “marcadores”. O Brasil adotou uma definição formal de crime organizado somente em 2013, (Lei 12.850), quando considerou organização criminosa “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”2 Trata-se de definição ampla envolvendo crimes de alguma seriedade (superiores a 4 anos), não exclusivamente voltados para obtenção de vantagens financeiras. Os níveis de estruturação podem ser frouxos e inclui ainda todos os crimes que tenham caráter transnacional. Os antigos crimes de quadrilha ou bando transformaram-se em “associação criminosa”, por sua vez “formada por grupos de três ou mais pessoas com o fim específico de cometer crimes.”

Embora não exista uma lista definitiva de crimes que poderiam ser classificados de “organizados”, uma das metodologias adotadas (WHO, quem comete o crime) para medir crime organizado procura listar a quantidade de presos e condenados pela justiça por determinados crimes que impliquem em certa estruturação e divisão de tarefas – cujas penas superem determinado número de anos e que tenham sido cometidos em conjunto com outros comparsas, reunidos de forma duradoura. Trata-se quase sempre de uma aproximação, uma vez que a definição de crime organizado inclui diversas características que são difíceis de extrair dos dados. Mas é uma das formas de operacionalizar o conceito de crime organizado, cuja mensuração é bastante problemática.

Apenas como um exercício para estimar a ordem de grandeza e extrair algumas implicações, neste artigo faremos uma aproximação da quantidade de crime organizado no Brasil, a partir da lista de assuntos tratados pelo CNJ, lembrando que não há garantia de que tenham realmente sido cometidos por membros de organizações ou associações criminosas.

O banco de assuntos do CNJ conta com mais de 2.700 tipos de assuntos que são tratados pela justiça brasileira, em todos os seus ramos. A tabela em anexo traz apenas 58 assuntos que podem estar relacionados à atividade do crime organizado, uma vez que implicam em certa estruturação, permanência e divisão de tarefas, precisam ser cometidos em grupo, tem penas superiores a 4 anos e ou caráter transnacional. Outros autores poderiam ter incluído outros assuntos, mas os resultados não seriam muito diferentes, se houver concordância mínima a respeito dos 5 principais, que acumulam a maioria dos casos. Com efeito, os cinco primeiros assuntos na tabela – Associação para a Produção e Tráfico e Condutas Afins, Contrabando ou descaminho, Promoção, constituição, financiamento ou integração de Organização Criminosa, Quadrilha ou Bando e Crimes de”Lavagem”; ou Ocultação de Bens, Direitos ou Valores – somados, representam 81% dos 58 crimes listados.

Trata-se apenas do número de casos novos por ano entre 2020 e 2023, pois o número de casos pendentes é muito maior. Em média, agregando estes 58 assuntos, estamos falando de 174 mil novos casos por ano, levando em conta todos os ramos da justiça, todos os procedimentos e graus.

Uma primeira questão de interesse é saber quanto estes 58 crimes potencialmente relacionado ao crime organizado representam dentro do universo de procedimentos de ordem penal? Pela tabela abaixo, vemos que o CNJ contabiliza anualmente, em média, cerca de 2 milhões de procedimentos penais. Isso significa que cerca de 9% dos assuntos de direito penal analisados pela Justiça podem ter atualmente alguma relação com o crime organizado.

Como se tratam de crimes sérios, cujas penas são em geral grandes, uma boa parte dos casos termina em condenação em regime fechado, de modo que a proporção de condenados cumprindo pena por estes crimes no sistema prisional deve ser ainda mais elevada.

Casos novos, assuntos Direito Penal e casos potencialmente relacionados ao crime organizado

 

Os TJs estaduais julgam 57% dos casos de “crime organizado” e, como esperado, os TJs de Minas, Rio e São Paulo respondem pela maioria dos casos (36,2%).

Embora estejamos lidando com uma série histórica de apenas quatro anos, é interessante destacar a queda no período da “Associação para a produção e tráfico de drogas” – coincidindo com a queda das ocorrências de tráfico feitas pelas polícias nos últimos anos – e a queda de “Quadrilha ou bando” (16.615 para 9.158 casos), que parece estar aos poucos sendo substituída por “Associação Criminosa”, que sobe de 241 para 9.697 casos entre 2020 e 2023.

A ideia aqui é apenas ilustrar que é possível tentar contabilizar ocorrências relacionadas ao crime organizado, indiretamente, através dos procedimentos judiciais, estimar sua participação no universo de crimes e acompanhar sua distribuição espacial e temporal.

De posse de uma variável que consiga medir o conceito de crime organizado de modo válido e confiável, é possível tentar explicar porque ele está mais ou menos presente em determinados locais e períodos, que outras variáveis ajudam a entender sua prevalência ou ainda que outros fenômenos o crime organizado ajuda a explicar (taxa de homicídios?). Do ponto de vista operacional, é útil para dimensionar quantos recursos o sistema de justiça criminal dedica ao problema.

Crime organizado é hoje um dos problemas mais sérios do país e é necessário um esforço institucional para criar um sistema de indicadores que consiga medir o fenômeno, em abito federal e estadual. Se não sabemos quantos grupos, membros, faturamento, crime cometidos nem outras informações básicas sobre o crime organizado, não conseguimos tampouco avaliar se o poder público está ganhando ou perdendo essa luta. A sensação generalizada é de que  estamos perdendo feio: mas é importante saber de quanto estamos perdendo, se a intenção for virar o jogo.

 

 

1Marcadores biológicos, por exemplo, são substâncias presentes no organismo que indicam a presença ou ausência de uma doença, bem como o estágio em que ela se encontra. São utilizados para diagnóstico e para predição.

 

2 Pela definição do tratado das Nações Unidas, “Organized criminal group” shall mean a structured group of three or more persons, existing for a period of time and acting in concert with the aim of committing one or more serious crimes or offences established in accordance with this Convention, in order to obtain, directly or indirectly, a financial or other material benefit. Note como enfatizamos a definição baseada em “traços” típicos do modus operandi e a ausência de uma relação específica de crimes.

 

 

Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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