Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
Este é o título de um dos livros que mais me impressionaram nos últimos tempos. Com o subtítulo Um novo contrato social, focaliza as principais formas como os diversos países se organizam para garantir padrões satisfatórios de sobrevivência para suas populações. Lamentavelmente, com raríssimas exceções, não conseguem atingir os objetivos a que se propõem, gerando, em consequência, diferentes tipos de decepção.
A autora, Minouche Shafik, é diretora da London School of Economics and Political Science, a prestigiada instituição britânica conhecida pela sigla LSE. Nascida no Egito, emigrou ainda na infância para os Estados Unidos, mudando-se depois para o Reino Unido, onde cursou pós-graduação em economia. Além de ter sido a mulher mais jovem a ocupar o cargo de vice-presidente do Banco Mundial, foi secretária permanente do Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, vice-diretora do FMI e vice-presidente do Banco da Inglaterra. Como se vê, um currículo invejável, de quem se acostumou a lidar com problemas políticos, econômicos e sociais no mundo todo.
Seus comentários no primeiro capítulo, intitulado O que é o contrato social?, são excelentes para se ter uma noção do que virá nos capítulos subsequentes. Reproduzo alguns deles por considerá-los extremamente expressivos:
A forma como uma sociedade está estruturada tem consequências profundas na vida de quem vive nela e na arquitetura das oportunidades que surgem. Delimita não apenas as condições materiais, mas também o bem-estar, os relacionamentos e as perspectivas de vida. A estrutura da sociedade é determinada por instituições como os seus sistemas político e jurídico, a economia e a forma como a vida familiar e comunitária estão organizadas. Todas as sociedades optam por deixar que algumas coisas sejam designadas pelos indivíduos e outras pela coletividade. As normas e as regras que estabelecem como essas instituições coletivas operam é o que chamamos de contrato social, que acredito ser o determinante de maior relevância no tipo de vida que levamos. Devido à sua grande importância e porque a maior parte das pessoas não pode deixar facilmente sua sociedade, o contrato social requer o consentimento da maioria e a renegociação periódica, à medida que as circunstâncias mudam (p. 21).
Na sequência, ainda no mesmo capítulo, Shafik afirma que “as pessoas se sentem decepcionadas com o contrato social e com a vida que ele lhes oferece, apesar dos enormes ganhos oriundos do progresso material que o mundo viu nos últimos cinquenta anos”. Afirma também que, embora as condições de vida sejam bem diferentes em países desenvolvidos e não desenvolvidos, apresentando padrões de vida muito superiores nos primeiros, a insatisfação aparece em todos eles, ainda que as motivações sejam distintas. Para corroborar tais colocações, Shafik indica que “pesquisas nos Estados Unidos, na Europa, na China, na Índia e em vários países em desenvolvimento mostram que quatro em cada cinco pessoas acreditam que o ‘sistema’ não está funcionando para elas”.
No livro, a autora não apenas tenta chegar às causas básicas dessa decepção pelas lentes do contrato social, mas vai além, propondo mudanças no sentido de aperfeiçoar os sistemas e as instituições vigentes em aspectos essenciais da vida em sociedade, como saúde, educação e trabalho nas diferentes etapas da vida, da infância à velhice, sem deixar de focalizar as questões e responsabilidades intergeracionais.
Para tanto, algumas das questões levantadas por Shafik são (p. 22):
“O quanto a sociedade deve a um indivíduo e, em troca, quais os deveres de um indivíduo? E, neste momento de grandes mudanças, como essas obrigações mútuas precisam se adaptar? As respostas a essas perguntas parecem estar no cerne da solução de muitos dos desafios políticos, econômicos e sociais que o mundo enfrenta hoje.”
Nos capítulos subsequentes, a autora examina as condições vigentes nos contratos sociais existentes na atualidade em diferentes países, envolvendo aspectos como: a decisão de ter ou não filhos e, em caso positivo, definir quem cuidará deles, em especial quando são muito pequenos (capitulo 2); embora haja consenso quanto à importância da educação para o desenvolvimento e também quanto à relevância da educação nos primeiros anos da vida de qualquer pessoa, como cada sociedade inclui a educação como parte central de seu contrato social? (capítulo 3); reconhecendo que ser saudável é o determinante mais fundamental do nosso bem-estar e que a saúde física e mental está no topo de todos os grandes estudos sobre felicidade no mundo inteiro, como financiar os elevados custos de prover assistência médica a toda a população? (capítulo 4); como garantir trabalho, emprego e renda a todos num mundo cada vez mais influenciado por avanços tecnológicos nos quais as máquinas passam a substituir os homens na realização de uma série de tarefas, em especial daquelas mais básicas e repetitivas, responsáveis pela ocupação de parcela considerável dos trabalhadores menos qualificados? (capítulo 5); como garantir dignidade na velhice, tendo em conta a tendência de vida mais longeva em razão das melhores condições de vida propiciadas pelo desenvolvimento e dos avanços na área da saúde? (capítulo 6); como enfrentar os desafios intergeracionais num mundo em que uma proporção cada vez menor de trabalhadores ativos se vê diante da necessidade de custear as despesas inerentes à população de inativos, muitos dos quais idosos, que, mesmo querendo, não encontram oportunidades de trabalho? (capítulo 7).
Para todos esses aspectos, Shafik direciona sua visão com a seguinte perspectiva: “O que nós devemos uns aos outros? Com quem sentimos obrigações mútuas?”.
Sua resposta é digna de reprodução:
Esta é uma pergunta complexa que tem dimensões pessoais, culturais e históricas. Gosto de pensar nas obrigações mútuas como círculos concêntricos. Em essência, a maioria de nós sente mais obrigação em relação à família e aos amigos mais próximos. Pais farão enormes sacrifícios pelos filhos; amigos farão todo possível para apoiar uns aos outros. No anel seguinte do círculo está a comunidade em que vivemos. Em geral, esse é o domínio de grupos voluntários, de associações religiosas, da vizinhança e das estruturas governamentais locais. No próximo anel está o Estado-nação, no qual temos obrigações com os deveres da cidadania – pagar impostos, obedecer às leis, votar, participar da vida pública. Em um projeto de integração regional como a União Europeia, houve uma tentativa de fomentar um senso de “nós” em outro anel formado por cidadãos de Estados-nações que são membros da união. O círculo final é o mundo, onde as obrigações podem ser mais fracas, mas se tornam mais evidentes em momentos de crise humanitária ou com um desafio global como a mudança climática, quando a solidariedade internacional se torna importante.
Vale destacar um alerta feito por Shafik, que os leitores precisam ter em mente no decorrer de todo o livro sobre a diferença entre contrato social e Estado de bem-estar social:
Muitas pessoas pensam que o contrato social é o mesmo que Estado de bem-estar social, mas os conceitos não são equivalentes. O contrato social determina o que deve ser fornecido à coletividade e por quem; o Estado de bem-estar social é um dos vários meios possíveis de provisão. Na verdade, em todas as sociedades, uma grande quantidade do que está dentro dos limites do contrato social continua a ser fornecido pelas famílias – por exemplo, por meio do trabalho não remunerado dos pais na educação dos filhos, na reunião de recursos em épocas de problema de saúde ou desemprego, ou por meio da contratação de seguros privados. Comunidades, organizações de caridade e de voluntários fazem muito para cuidar dos necessitados e idosos, responder às crises humanitárias e apoiar as pessoas a voltarem ao mercado de trabalho. Empregadores são, com frequência, obrigados por lei a dar conta de alguns aspectos do contrato social, contribuindo para benefícios de seguro-desemprego e, em alguns países, para seguro de saúde obrigatório. Outros ainda fornecem serviços adicionais, como creches, benefícios educacionais e de apoio ao bem-estar e à saúde mental.
Portanto, prossegue Shafik:
Quando menciono o contrato social, portanto, refiro-me à parceria entre indivíduos, empresas, sociedade civil e Estado para contribuir com um sistema em que haja benefícios coletivos. Quando cito o Estado de bem-estar, refiro-me aos mecanismos para agrupar riscos e investir em benefícios sociais mediados pelo processo político e pela subsequente ação do Estado. Isto pode ser feito diretamente, por meio de impostos e serviços públicos, ou de forma indireta, através de regulamentações que exigem que o setor privado forneça apoio. Os benefícios coletivos também podem incluir um Estado atuando como segurador de último recurso; por exemplo, ao evitar que as pessoas morram de fome ou fiquem desabrigadas ou desamparadas em caso de desastre natural ou pandemia.
Antes de concluir, faço questão de ressaltar a qualidade das análises da autora, que refletem não apenas seu preparo intelectual, mas também a ampla experiência de quem se defrontou ao longo de sua carreira profissional com diversas das questões examinadas no livro. A título de exemplo, no que se refere à previdência social, Shafik vai muito além das discussões tradicionais que se limitam a comparar eventuais vantagens e desvantagens dos sistemas de repartição, nos quais os trabalhadores ativos pagam os benefícios dos que estão inativos, e dos sistemas de capitalização, que funcionam como uma poupança objetivando uma garantia para a aposentadoria, em que cada trabalhador contribui para pagar a própria aposentadoria, fazendo aportes em uma conta particular.
Por todas as razões acima expostas, recomendo a todos a leitura de Cuidar uns dos outros, em especial no ano em que nós, brasileiros, nos encontramos, ano eleitoral, quando se espera que candidatos à presidência e governos estaduais estejam preparados e munidos de planos para se defrontar com situações como as examinadas por Minouche Shafik.
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