José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição: Scriptum
Tudo começou com Ruy Barbosa (de Oliveira) e Prudente (José) de Moraes (Barros), ao redigir nossa primeira Constituição republicana, de 1891. Preocupados com o início caótico da República, decidiram recriar uma espécie de Poder Moderador até pouco exercido, com prudência e zelo, pelo imperador Pedro II. E conferiram ao Supremo, além de ser uma Corte Constitucional (como em todos os países), também o poder de ser instância revisora do Poder Judiciário. Do Executivo e do Legislativo, não, que tinham juízo. Sem contar que ambos sonhavam, então, em ser presidentes da República. E não iriam impor limites a eles mesmos.
Prudente, depois de uma primeira tentativa frustrada (perdeu para Deodoro da Fonseca, por 129 votos contra 97), conseguiu suceder (eleito com 276.583 votos contra 38.291 de Afonso Pena) Floriano Peixoto, que chegou à presidência com o golpe de 23 de novembro de 1891. E governou de 1894 a 1898. Ganhou a guerra de Canudos, contra o mítico Antônio Conselheiro. E tinha sorte. Tanto que sobreviveu a um atentado, supostamente encomendado por seu vice, Manuel Vitorino; por ter o ministro de guerra, Marechal Bittencourt, se jogado sobre ele. O militar acabou morrendo. E Prudente pôde encerrar seu mandato sem maiores problemas.
Já Ruy ocupou, por uma semana, o Ministério da Justiça. Para, depois, ser ministro da Fazenda em 1889. No cargo, foi responsável por uma gestão ruinosa. E populista. Igual à de tantos que lhe foram posteriores. Atrasou o país, retardando a industrialização, ao proibir a importação de máquinas da Inglaterra. Liberou financiamentos a granel. para os campeões nacionais da época, os produtores rurais. Promoveu a emissão indiscriminada de moeda, a inflação foi para o espaço.
Por fim, ainda quebrou o Banco do Brasil pela segunda vez (a primeira foi em 26 de abril de 1821, quando a família real voltou a Portugal e com ela foram todos os recursos do banco). Carlota Joaquina, esposa de Dom João VI, ao embarcar na nau, bateu os sapatos e disse: “Do Brasil não quero levar nem terra”. Deixou terra e levou junto seus nove filhos, dos quais cinco feitos fora de portas; e, ainda, toda nossa grana.
Depois, Ruy tentou ser presidente por 4 vezes. Sem sucesso. Antes que me esqueça, ainda aprovou a primeira bandeira do Brasil, na República, inspirada na dos Estados Unidos. Substituída pelo clamor popular quatro dias depois, graças a Deus, por nossa atual bandeira. Mas essa é outra história.
O descalabro na economia foi dominado só no governo (Manuel Ferraz de) Campos Sales, 1898 a 1902, que renegociou a dívida externa com a Inglaterra, cancelou obras, reduziu drasticamente as despesas, deu início a um programa de privatizações e, afinal, equilibrou as contas públicas. Provando que o Brasil é maior que o abismo.
Voltando ao Supremo, seus poderes foram bem definidos na Constituição que redigiram. Semelhantes aos de hoje, que estão no art. 102 de nossa Constituição de 1988. A ver: I. “Processar e julgar, originalmente, ações diretas de inconstitucionalidade” e outras; II. “Julgar, em recurso ordinário, habeas corpus” e outros; III. e “Julgar, mediante recurso extraordinário, causas decididas” em outras instâncias do judiciário. Apenas isso. Cabe, então, perguntar: pode o Supremo investigar?
NÃO! Segundo ao art. 129, esta é uma “função institucional do Ministério Público”. Embora o ministro Alexandre de Moraes investigue e prenda, sob o silêncio cúmplice de seus colegas do Supremo, da OAB e de tantos mais que preferem pôr a política partidária em grau superior à Constituição.
Pode o Supremo tomar medidas próprias do Poder Executivo? Também NÃO!! Essas cabem, art. 84 da Constituição, apenas ao presidente da República. E, sem que se possa compreender, faz isso todo dia, desde proibir voos de helicópteros sobre favelas a impedir a nomeação de cargos públicos.
Por fim, pode o Supremo fazer leis? Igualmente NÃO!!! Isso cabe, art. 41 e seguintes, ao Congresso Nacional. Mas, sem nenhum constrangimento, vem também fazendo isso com frequência. Inclusive criando o crime de homofobia. E com numerosas decisões similares menores.
Chegamos, afinal, ao ponto. O Congresso está votando, agora, o Marco Temporal das terras indígenas. O assunto é regulado pelo art. 231 da Constituição, que garante aos índios as “terras que tradicionalmente ocupam”. A intenção da Assembleia Constituinte com essa expressão, “tradicionalmente ocupam”, era o de garantir aos índios apenas aquelas terras que já eram então reconhecidas. Excluindo, de demarcações futuras, novas terras por eles ocupadas posteriormente à Constituição de 1988. Mas ainda permanecem dúvidas.
Lembro episódio ocorrido em 1985. Quando tivemos, no Ministério da Justiça, um caso em Santa Catarina. Índios da etnia Erikbatsa Japuira encontraram vestígios de um cemitério da tribo, no local. E reivindicaram aquelas terras. De outro lado colonos receberam do governo brasileiro, no início dos anos 1900, títulos de propriedade. Para desenvolver uma região na época desabitada.
Por 4 gerações lavraram aquelas terras, lá tinham suas famílias e toda uma memória ancestral. Não foi possível conseguir, e tentamos com grande esforço, algum acordo entre as partes. Ambos os lados tinham seus argumentos e se recusaram a abrir mão deles. Pessoalmente escolheria manter, no local, os milhares de trabalhadores, todos pessoas simples, que já lavraram aquelas terras por décadas. Mas isso é secundário, em nossa conversa, o que importa é reiterar ser esse um assunto que cabe ao Poder Legislativo decidir. Ponto final.
Ocorre que o Supremo quer impor sua opinião. Atropelando a Constituição que determinou serem, art. 2º, “os Poderes da União independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Porque, hoje, o Congresso já está decidindo a matéria. A Câmara dos Deputados aprovou projeto que trata da demarcação das terras (PL 490/2007). Com o assunto sendo, presentemente, votado no Senado (PL 2.903/2023). Em resumo, nosso Congresso é o único órgão legítimo para decidir essa questão. E já está votando.
Caberia ao Supremo, então, fazer um self restraint. Suspendendo qualquer votação, que porventura estivesse fazendo, para esperar a decisão do Poder Legislativo. Só que, parece, mais uma vez quer impor sua vontade. Como se tivesse direito, e não tem, de se pôr acima de tudo e de todos. Isso não é Democracia.
Num país que precisa de convergência, o Supremo deveria ser o órgão a conduzir uma pacificação do país. Mas quer o confronto. É insensato. É inaceitável. Sonho com esse dia em que, num gesto altivo de reflexão e maturidade, troque a beligerância atual pelo papel nobilíssimo de trazer paz ao País. É razoável esperar isso? Como dizia Quincas Berro d’Água, personagem de Jorge Amado em A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, “impossível não há”. Vamos rezar, então, quem sabe?
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