Sérgio Rondino, jornalista e coordenador de comunicação do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Charles Lindbergh sorria enquanto o diretor do jornal o apresentava a um grupo de jornalistas. Sim, ele mesmo: o mundialmente famoso piloto norte-americano que, em 1927, 40 anos antes, cruzara pela primeira vez o Oceano Atlântico num arriscado voo sem escalas. O diretor do jornal era ninguém menos que o então patriarca da família que comandava o jornal, Júlio de Mesquita Filho. Era 1967 e eu, 20 anos de idade, repórter iniciante, fazia parte daquela roda, deslumbrado por estar ao lado daquelas figuras históricas.
Ah, as memórias… Elas me assaltaram neste 4 de janeiro de 2025, com a leitura do excelente caderno especial do jornal O Estado de S.Paulo, o Estadão, lançado em comemoração pelos 150 anos de sua existência. Lembranças de muitos momentos que vivi durante 20 anos naquela agora sesquicentenária empresa de comunicação.
Sou, até hoje, um assinante do Estadão. Daqueles antigos, que gostam de receber em casa de manhã o jornal impresso pelo prazer de ler enquanto tomam o café matinal. É verdade que, atualmente, parte do noticiário eu já li no dia anterior, porque também tenho a assinatura digital, mas era assim também quando eu trabalhava lá na produção e edição do noticiário do dia seguinte. Hoje, mesmo com o mundo da comunicação digital me bombardeando a cada minuto com notícias de todo o planeta, há muito o que ler no meu Estadão de todo dia. Sou, naquela expressão antiga de nossas redações, o tal “leitor assíduo”.
E me refiro a “nossas” redações porque eram duas no meu tempo por lá: a do velho Estadão propriamente dito e a do jovem Jornal da Tarde, o vespertino da empresa lançado em 1966 – que fez uma revolução histórica no modo de fazer jornal e que hoje não existe mais, para tristeza minha e de muitos colegas de então. As duas redações ficavam no quinto andar do prédio da rua Major Quedinho, separadas apenas por um corredor. Que chamávamos de “corredor do tempo”, dada a diferença entre as equipes de profissionais. Diferença de idades, de vestimentas, de comportamento e até do próprio tipo de jornal que produzíamos de um lado e de outro.
Eu era um jovem de 20 anos, em 1967, quando pisei pela primeira vez no imponente prédio da rua Major Quedinho, no centro de São Paulo, para me candidatar a uma vaga de estagiário na redação do Jornal da Tarde e iniciar uma carreira profissional de comunicação que dura até hoje. É claro que não cabe aqui desfiar tantas lembranças que me vieram à cabeça com esse caderno do Estadão. Mas conto um episódio, se me permitem.
Uma bomba na madrugada
Madrugada de 20 de abril de 1968. Como o JT era vespertino, o trabalho na redação se estendia até três, quatro da manhã, hora em que a redação do Estadão estava deserta. Quase todas as editorias tinham finalizado suas edições e alguns poucos de nós ainda esperavam outros para comer alguma coisa em uma lanchonete vizinha. Um grupo já estava esperando nos elevadores – se não me falha a memória éramos eu, o repórter Ramon Garcia, os editores Fernando Portela e Fernando Mitre, o redator Nicodemus Pessoa, e o editor Guilherme Duncan, que era meu chefe na Política. Talvez houvesse outros ali, mas já não lembro.
Mitre, atual diretor de jornalismo na Rede Bandeirantes, conta que nesse momento alguém da redação avisou que faltava um título em certa página e ele voltou com mais alguém para resolver o problema. Confesso que não me lembrava desse detalhe. Foi tudo muito rápido. O que tenho na memória é que, nesse exato momento, um grupo desceu, enquanto eu e outros ficamos esperando outro elevador. Foi quando ouvimos um enorme estrondo, que parecia ter vindo lá de baixo – de fora, talvez?
Ficamos atarantados. Será que o elevador caiu? Mas não. Imediatamente em seguida a luzinha do elevador que descera mostrou que ele estava voltando. A porta se abriu e vimos sair – lívidos – Portela e Nicodemus. Consultei o Portela, que me relatou assim o que lembra:
“Estávamos descendo no elevador da direita (é incrível, mas lembro disso, e espero que a memória não me engane), apenas Nicodemus e eu. Imagino que à altura do segundo andar, pois o elevador já havia andado um pouco, a gente não chegou a ouvir um estrondo forte, mas um som abafado e algo como um deslocamento de ar. Ficamos meio “bobos”, fora do mundo. Paralisados. Naquele momento, não tivemos ideia do que era. Não nos mexemos, e o elevador, que havia parado, subiu de volta. Quando a porta abriu, no andar da redação, só me lembro da cara apavorada de alguém gesticulando e gritando “Bomba no jornal! Bomba no jornal!”. A partir daí não me recordo de mais nada. A não ser que continuei um tempo, alguns minutos, meio bobo. Escapamos por frações de segundos”.
Foi uma bomba. Colocada junto a uma das portas metálicas de entrada (que à noite ficava fechada), no lado da rua Martins Fontes, provocou uma explosão tão violenta que arremessou aquela porta em direção à outra entrada, onde ficava o porteiro Mário José Rodrigues, o nosso sêo Mário, figura gentil. Ele não foi atingido, mas jogado violentamente contra a parede. Ficou apenas ferido, ainda bem.
E nós? Se houvéssemos descido segundos antes talvez estivéssemos cruzando o saguão da portaria no exato momento em que a pesada porta veio voando do outro lado.
É assim que me lembro. O que se seguiu, como não poderia deixar de ser, foi a convocação geral e muito trabalho para todos nós, até o JT sair às ruas com a manchete: “Uma bomba neste jornal”.
Naquele momento era presumível imaginar que se tratava de terrorismo da extrema esquerda. Mas não era possível comprovar, o que só ocorreu anos depois. Vale reproduzir um trecho do livro Pedro e os lobos (Ava Editorial), de João Roberto Laque, que conta a história do militar e guerrilheiro urbano Pedro Lobo de Oliveira:
“(…) Três da manhã do dia 20 de abril. Pedro Lobo e seus companheiros da esquerda armada estão a postos para mais um atentado. Dessa vez, o alvo é a sede do jornal O Estado de S.Paulo. Desde muito, a família Mesquita é odiada pelas esquerdas. Os proprietários do centenário matutino e do Jornal da Tarde conspiraram contra João Goulart ainda no início do seu governo e chegaram a passar o chapéu entre empresários, visando financiar o golpe que derrubaria João Goulart.
E, para a afronta aos Mesquita, Pedro é um dos escalados:
“‘A gente parou o carro próximo à entrada do jornal, um companheiro desceu e foi lá na entrada do prédio colocar a bomba, que tinha seis quilos de uma dinamite gelatinosa preta. Dali, o comando desceu para a Praça da Bandeira e cada um seguiu para sua casa.”
A violenta explosão no prédio da rua Major Quedinho com a Martins Fontes, centro da cidade, arrebenta a porta de aço, destrói o saguão revestido de mármore, deixa ferido o porteiro do jornal, Mário José Rodrigues, e estilhaça os vidros das janelas de todos os prédios num raio de quinhentos metros”.
Um carro explode
Pois é… haveria outra bomba, anos depois, em 1983, quando as redações e toda a empresa já haviam se mudado para um novo e imenso prédio na Marginal do Tietê. Dessa bomba, felizmente, só fiquei sabendo no dia seguinte, e a cito apenas para lembrar como o Estadão foi alvo também de terrorismo da extrema direita.
Sobre ela, reproduzo trecho do livro Memórias de uma guerra suja (Ed. Topbooks), dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, com depoimento do delegado Claudio Guerra, integrante dos órgãos de repressão durante o regime militar:
“(…) Um dos jornais mais críticos ao sistema era O Estado de S. Paulo. Perdigão e Vieira (os coronéis da linha dura Fredie Perdigão Pereira e Antonio Vieira) queriam fazer um atentado lá, para chamar atenção, fazer barulho, mas sem vítimas.
Eu mesmo idealizei tudo. A bomba seria colocada do lado de fora do prédio do jornal, assim eu teria mais controle para não atingir ninguém. Foi no dia 14 de novembro de 1983. (…) Montei a bomba com um despertador como gatilho, guardei no porta-malas do carro e fui para o estacionamento do jornal O Estado de S.Paulo. Parei o Voyage com a traseira virada para o prédio.
O prédio do jornal era grande. Ao lado, havia um viaduto na Marginal, onde eu fiquei esperando o momento da explosão. Tive o cuidado de preparar a bomba com o mesmo tipo de explosivo que o pessoal de Cuba usava, mas era para ficar caracterizado que a autoria era da esquerda. Ficamos observando para se ver se alguém encostaria no carro. Ninguém apareceu. Aí aconteceu a explosão, foi aquele fogaréu”.
E assim foi. Haveria muito mais o que contar – a noite do AI-5, o confisco da edição com o editorial Instituições em frangalhos, último redigido pelo próprio doutor Julinho, os censores e as receitas publicadas nas matérias censuradas, as grandes coberturas como as da tragédia de Caraguatatuba e do incêndio no edifício Joelma, do congresso da UNE em Ibiúna… Longa história.
Continuo gostando do velho jornalão (hoje menor, formato Berliner), com sua tradição, seus acertos e seus erros. Há quem não goste. Mas como negar a relevância de seu papel na história do País? Fico entre aqueles que o aplaudem.
Os artigos publicados com assinatura são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do PSD e da Fundação Espaço Democrático. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.