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{ ARTIGO }

Estatísticas criminais devem ser interpretadas com prudência

O sociólogo Túlio Kahn descreve dificuldades inerentes às estatísticas baseadas em registros administrativos, uma vez que dados oficiais de criminalidade estão sujeitos a limites de validade e confiabilidade

Túlio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

 

As estatísticas oficiais de criminalidade são utilizadas regularmente em todos os países para retratar a situação da segurança pública nacional. Mas devemos lembrar que estes dados devem sempre ser interpretados com prudência, pois os dados oficiais de criminalidade estão sujeitos a uma série de limites de validade e confiabilidade. Eles são antes um retrato do processo social de notificação de crimes do que um retrato fiel do universo dos crimes realmente cometidos num determinado local.

Para que um crime faça parte das estatísticas oficiais são necessárias três etapas sucessivas: o crime deve ser detectado, notificado às autoridades policiais e por último registrado no boletim de ocorrência ou outro documento oficial de registro. Flutuações nos registros nem sempre refletem variações do fenômeno criminal na medida em que podem ser causadas por mudanças de notificação, atividades policiais mais ou menos intensas ou por modificações de ordem legislativa ou administrativa, entre outros fatores.

Assim, por exemplo, independente da variação da criminalidade, os registros oficiais tendem a aumentar: quando aumenta a ação policial, quando aumenta a confiança na polícia, quando há mais recursos para as polícias, quando melhora o atendimento nas delegacias, quando há delegacias especializadas em determinados temas como Delegacias da Mulher, Idoso e Infância, etc., quando existe a possibilidade de notificação pela internet.

Tentar medir a violência e a criminalidade é uma tarefa difícil pela sua amplitude e dinâmica, mas também porque as fontes de informação – principalmente as oficiais – possuem fraquezas, especialmente no que tange à disponibilização e cobertura. Uma das razões é definida por Tilley: “Nem todos os crimes são notificados e nem todos aqueles que são notificados são registrados” (2009, p. 161).

São duas diferentes situações que os criminólogos chamam de cifra negra e cifra cinza – esta última ocorrendo quando a vítima chega a entrar em contato com a polícia, mas assim mesmo o crime não é registrado. Esses crimes ocorridos, mas não registrados pelas entidades responsáveis, principalmente pela polícia, constituem a cifra oculta. Ela não só está relacionada a lacunas no registro, mas também à existência de determinadas ocorrências que têm maiores possibilidades de serem incluídas no sistema devido a diversos elementos, como, por exemplo, seriedade do crime, interesses institucionais, alterações legais ou mudanças no manejo do registro que possam incidir nas estimativas fornecidas acerca da criminalidade.

Por sua vez, os aspectos técnicos do registro e a produção de estatísticas criminais apresentam dificuldades, tais como: diferenças na unidade de análise, brechas na cobertura onde se pode notificar a ocorrência, deficiências tecnológicas, o processo de sistematização dos antecedentes ou aspectos institucionais que marcam o funcionamento e, com isso, a produção de informação, como a possibilidade ou não de registro online.

De acordo com Anna Alvazzi del Frate (2010), existem outros elementos que atrapalham a construção de um sistema sólido de estatísticas criminais. Dois elementos de alta relevância são as dificuldades de financiamento e a falta de capacidades. Ambos afetam o desenvolvimento de metodologias e instrumentos, incidindo no nível de registro e, consequentemente, na qualidade das estatísticas criminais geradas.

Assim, o esforço por conhecer a criminalidade real é um processo em constante construção, tanto pelo alcance das metodologias e instrumentos utilizados, como também pela articulação das fontes de informação primária disponíveis.

As estatísticas criminais são antes um retrato de como trabalha o sistema de justiça criminal, que define, limita ou amplia, segundo seus interesses e capacidade, aquilo que cada época e lugar convencionou classificar como crime.

Neste sentido, é interessante lembrar a ressalva das Nações Unidas, que organiza e divulga o Crime Trend Survey, compêndio internacional de estatísticas criminais baseado em dados administrativos. Os números relativos à criminalidade registrada são indicadores de comportamento social, mas neste contexto são, principalmente, vistos como indicadores da carga de trabalho com o qual as agências do sistema penal lidam. As demais estatísticas formam um registro de como o sistema responde a essa carga de trabalho. (Burnham, 1997)

Se medir a criminalidade a partir de registros oficiais já é um problema complexo, tanto mais é procurar fazer comparações entre diferentes sistemas de registros. A questão que se coloca nos levantamentos de estatísticas criminais de diferentes locais é: teríamos algo minimamente comparável fazendo um levantamento nacional? Estamos falando aqui de diferentes maneiras de definir os crimes, de diferentes níveis de notificação, de distintos sistemas de justiça criminal, de diversas formas de contar os crimes e de registrá-los. Levantamentos comparativos são muito heterogêneos e sem um grande esforço de compatibilização corremos o risco de comparar coisas bastante diferentes

Existem diferenças tão significativas na forma como os dados são coletados e processados em cada lugar que muitos criminólogos duvidam da possibilidade de fazer comparações fidedignas utilizando registros criminais oficiais. Mesmo comparações com relação a crimes relativamente padronizados, como homicídios, podem ser enganosas se não soubermos como os casos são definidos e tratados. Desnecessário alertar que qualquer tipo de hierarquização de países e estados com base nos registros oficiais é bastante enganoso e deve ser evitado ao máximo.

Por todo o exposto, é preciso precaver-se de todas as formas possíveis contra as comparações espúrias, procurando garantir que todos os envolvidos no processo de construção da base de dados tenham definições e regras minimamente compartilhadas. Somente após este esforço compatibilizador podemos partir para análises mais avançadas, procurando explicar as diferenças observadas entre os Estados e avançar hipóteses mais complexas sobre os fenômenos criminais.

Bibliografia

COSTA, Arthur Trindade Maranhão; LIMA, Renato Sérgio de. Segurança pública. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli de (Orgs.). Crime, polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

DEL FRATE, Alvazzi. Crime and criminal justice statistics challenges, in: Harrendorf, S.; Heiskanen, M.; and Malby, S (Eds.). International statistics on crime and justice, HEUNI Publication Series, Nº64, HEUNI-UNODC, Helsinki, Finland. 2010.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Nota Técnica n 17. Atlas da Violência 2016. Brasília: 2016.

LIMA, Renato Sérgio de. A produção da opacidade: estatísticas criminais e segurança pública no Brasil. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo , n. 80, p. 65-69, Mar. 2008 .

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA – SENASP. DEPARTAMENTO DE PESQUISA, ANÁLISE DA INFORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE PESSOAL EM SEGURANÇA PÚBLICA. Manual de Preenchimento Formulário de Coleta Mensal de Ocorrências Criminais e Atividades de Polícia. 2ª Edição. Brasília, S/D.

TILLEY, N. Crime prevention, Willan Publishing, Devon, UK: 2009

UNODC. Uma breve história da base de estatísticas criminais e de justiça das Nações Unidas, em nível internacional”. Baseado em Burnham, artigo original , 1997, extraído do website da UNODC.

UNODC. UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. International Classification of Crime for Statistical Purposes ICCS. Versão 1.0. Viena: 2015.

 

 

 

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