Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Em 2005 escrevi para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo uma espécie de manual para interpretação de estatísticas criminais e observei que alguns indicadores de atividade policial, como recuperação de veículos roubados, não poderiam ser interpretados tomando sua magnitude absoluta, uma vez que este tipo de indicador varia em razão do volume de crimes.
Em outras palavras, regra geral, quanto maior a quantidade de veículos subtraídos (roubados ou furtados), maior a probabilidade de recuperação de veículos. Assim, não se justifica encarar um aumento absoluto na recuperação de veículos como um dado positivo. Conforme ponderei na ocasião, “a magnitude dos indicadores de atividade policial de resultados (indicadores de “outputs”) varia com a quantidade de crimes[1]. Por isso os indicadores de atividade policial – veículos recuperados, cargas recuperadas, armas apreendidas, prisões efetuadas, cativeiros descobertos etc. – devem ser vistos, quando possível, em relação aos crimes, pois quanto mais crimes, maior a probabilidade de que a polícia consiga mais flagrantes, mais armas, mais entorpecentes, mais cargas e veículos recuperados. Se analisados do ponto de vista de sua magnitude absoluta, estes indicadores podem ser enganosos, pois se o volume absoluto de veículos roubados está caindo, é claro que o volume absoluto de veículos recuperados também cairá. Neste caso, o mais correto é verificar qual a porcentagem de veículos recuperados sobre o total de veículos roubados e furtados” (Manual de Interpretação das Estatísticas Criminais, Kahn, 200).
Só podemos falar em ganho de produtividade quando temos um aumento na porcentagem de veículos recuperados sobre o total de veículos extraviados. Esse ganho de produtividade pode ser atribuído a alguma melhora na atividade policial ou a outras circunstâncias externas, como novas tecnologias de rastreamento e bloqueio de veículos, que tornam mais fácil a sua recuperação.
No gráfico abaixo vemos a porcentagem de veículos recuperados no Estado de São Paulo entre 2022 e 2024. A porcentagem passou de uma média de 30,5% em 2022 para 44,7% em 2024 crescimento de quase 15 pontos percentuais. Esse crescimento foi provocado tanto pela diminuição na quantidade de veículos extraviados – que caiu de 138 mil em 2022 para 125 mil em 2024 – quanto pelo aumento do número absoluto de veículos recuperados – que cresceu de 41.927 em 2022 para 56.170 no ano passado. Assim, neste período, o aumento da recuperação não se deveu ao aumento da criminalidade, mas apesar da queda. Em outras palavras, estamos diante de um ganho genuíno de produtividade.
Existem algumas hipóteses para explicar este crescimento da recuperação, tal como a hipótese da “securitização responsiva” mencionada anteriormente. Mas estas melhorias na tecnologia de segurança embarcada nos veículos já existem há vários anos e nada de revolucionário foi desenvolvido neste período.
Outra explicação seria o aumento da fiscalização policial e existem evidências de que algo ocorreu neste sentido. A Secretaria da Segurança publica trimestralmente o “número de revistas” efetuadas, incluindo aí veículos e pessoas. Segundo o órgão, as revistas teriam aumentado de 770 mil por mês para 927 mil em 2024, crescimento de cerca de 20% com relação ao ano anterior.
É preciso tomar algum cuidado aqui, pois, o número de revistas publicadas pela Secretaria da Segurança precisa ser mais bem monitorado – não obstante a Polícia Militar afirme que tem as datas e documentos das pessoas/veículos revistados. Se o número for correto, isso significa que 25% da população do Estado (11 milhões em 44 milhões) foi revistada em algum momento pela polícia em 2024, quantidade que parece inverossímil. De todo modo, supondo que a metodologia e definição de “revistas” não tenha sido modificada, parece ter ocorrido um crescimento razoável na quantidade de revistas em 2024, o que pode ter impactado tanto na dissuasão ao roubo de veículos quanto na sua recuperação. O aumento do número de revistas pode explicar também o crescimento da apreensão de armas no Estado (20,9%) no ano passado, na contramão da tendência nacional (-3%).
A explicação mais provável para a melhoria na recuperação de veículos parece residir no aumento do número de municípios paulistas que passaram a fazer parte do programa “muralha paulista”. De acordo com a Secretaria da Segurança, esse número subiu de 200 para 641 municípios, quase a totalidade de municípios do Estado (645). Segundo o site da secretaria, “por meio de convênios, a Secretaria da Segurança Pública interligou as câmeras do Estado, de municípios e da polícia em um único sistema para monitorar a movimentação de veículos suspeitos ou procurados pela Justiça. Ao todo, já são mais de 7,4 mil câmeras ativas. Desde o início da gestão, houve um aumento dos municípios conveniados para o monitoramento por meio do programa, expandindo o número de cidades conectadas ao sistema, saltando de 200 para 641 prefeituras”.
Uma análise robusta do impacto do programa precisaria avaliar as datas de início de cada convênio e seu impacto na criminalidade local, usando modelos estatísticos e controlando por outras variáveis, o que está fora do âmbito deste artigo. O que sabemos até o momento é que os dados mostram um ganho de produtividade na recuperação de veículos e que as câmeras do Muralha Paulista contam com leitores óticos de placas, entre outros recursos. Mas não podemos atribuir com segurança esse resultado ao programa sem uma pesquisa mais cuidadosa.
Tampouco vamos entrar nos aspectos polêmicos do “Muralha”, como as críticas ao viés racial de reconhecimento facial ou questões de privacidade. O fato é que o atual governo decidiu investir R$ 158 milhões no programa e atenuou suas críticas às câmeras corporais quando finalmente entendeu que elas são “dados” – o novo petróleo – e não servem apenas para fiscalizar a polícia. Hoje as câmeras corporais são parte do Muralha e o governo percebe que podem ser usadas para identificar fugitivos, desaparecidos, veículos roubados, como prova judicial etc., como se lê no Decreto de 9/24.
O Muralha, de resto, tem sua origem em gestões passadas [2] – em particular no Detecta – e foi rebatizado na atual gestão. Parte dos dados e da “inteligência” acoplada vem do programa federal Córtex e muita da concepção do Muralha deve-se à um oficial da PM de São Paulo que estava no Ministério da Justiça na gestão Bolsonaro. O Córtex, por sua vez, é a evolução do programa federal Infoseg, que há anos monitora placas de veículos roubados nas rodovias federais. O Muralha tampouco existiria não fosse a atuação de centenas de prefeitos que construíram as centrais de monitoramento em seus municípios. Se o Muralha está tendo algum sucesso é preciso reconhecer que se tratou de um longo processo e que envolveu inúmeras gestões e níveis de governo.
De modo que é do interesse geral avaliar de forma robusta seus efeitos, evitando o viés ideológico. As evidências iniciais sugerem um ganho de produtividade na recuperação de veículos em São Paulo e uma das hipóteses é que se deva ao programa Muralha Paulista. Infelizmente, como sempre ocorre na segurança e outros programas de governo, nenhum centavo destes R$ 158 milhões foi reservada para fazer uma avaliação séria do programa. Continuamos a analisar os projetos de segurança com base em palpites e em ideologias.
[1] Além dos indicadores de resultados (outputs), como apreensão de armas, prisões efetuadas, etc. o trabalho policial pode ser mensurado com indicadores de atividades (inputs) como número de operações realizadas, número de pessoas revistas, número de desmanches fiscalizados e outros, que não variam com a criminalidade.
[2] No documento “Sugestões para a SSP” de 2008, falávamos, no item tecnologia, em – “instalação de OCR – leitores ópticos de placas – nas principais rodovias estaduais, com ligação ao sistema INFOSEG, para a identificação de veículos procurados” e em “ampliação do monitoramento por câmeras das áreas centrais das cidades, junto aos Centro de Despachos de Viaturas”. De modo que estas ideias estão circulando nos órgãos de segurança há muitos anos.
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