José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição: Scriptum
Passados 60 anos do golpe, e 10 anos do fim de nossos trabalhos na Comissão Nacional da Verdade, anoto, para não passar em branco essa data, umas poucas lembranças:
1. DOIS PERSONAGENS. Depois de conhecer os fatos, mudou a dimensão que tinha de ao menos dois personagens daquele tempo. Um foi o presidente Geisel, que hoje considero apenas um carniceiro. Na Guerrilha do Araguaia, por exemplo, pouco mais de 20 guerrilheiros foram presos sob a promessa de que, depois de prestarem depoimentos, suas vidas seriam garantidas. E acabaram todos mortos. Por ordens superiores. Geisel foi quem deu o nome da operação, “Limpeza”. Limpeza de gente. Daqueles homens e mulheres que ficaram plantados naquelas terras, para sempre.
Outro personagem foi o ministro do SNI, Golbery do Couto e Silva. De quem tenho, hoje, impressão positiva. Era alguém diferente, que compreendia bem como a história se escreve. Criou o SNI, não apenas para fiscalizar os opositores do regime. Sobretudo, para controlar os seus, especialmente capitães e majores que não mais obedeciam aos generais. Veja-se, por exemplo, as explosões das bancas de jornais, tentativa de disseminar o terror. Ou o caso do Riocentro, programado para ser um morticínio. Outro dia conto algumas histórias dele. Como, por exemplo, a de quando evitou que Brizola fosse morto.
2. A CHAGA DA CORRUPÇÃO. É comum se dizer que, naquele tempo, não havia corrupção. Com o exame do que ocorreu, se pode hoje dizer, uma falsa lenda. Sem qualquer dúvida. Pouco depois de 31 de março, já o Brasil conhecia sua primeira Comissão Geral de Investigações – CGI (Decreto 53.897/64, extinta pelo Decreto 54.609/64). Ainda não contra a corrupção. Apenas para demitir servidores públicos que tivessem vitaliciedade ou estabilidade. E que ficaram contra o Golpe, nem seria preciso dizer.
Mas a segunda CGI (Decreto–Lei 359/68, extinta só pelo Decreto 82.961/78) foi criada precisamente para promover o confisco dos bens adquiridos, de maneira ilícita, no exercício da função pública. Por serem tantos casos que era mesmo necessário fazer algo. Definido, o enriquecimento ilícito (art. 6º), como “aquisição de bens, direitos ou valores… sem idoneidade financeira para fazê-lo…; “ou quando não houver comprovação de sua legitimidade”.
Esta segunda CGI tinha poderes (art. 38) para apurar quaisquer atos de corrupção. Sem que se conheçam, hoje, as investigações realizadas. Tudo destruído, essa foi a decisão dos poderosos da época, é pena. Mas foram muitos casos. Até porque, diferente fosse, e nem razão haveria para criar uma CGI assim. Aqui mesmo, em Pernambuco, um marechal, diretor da Caixa, enriqueceu apostando com os empresários da construção Fernando Rodrigues e Lynaldo Uchoa de Medeiros. “Aposto que não sai o financiamento”, e ele “Tá apostado”. O financiamento afinal saia, liberado pelo próprio, e o Marechal enriquecia. Quem viveu aquele tempo se recorda.
A evidência de corrupção ampla, no período, não para por aí. No início de 1969, começava a nascer a Operação Bandeirantes – OBAN. Pensada para ser o braço clandestino dos órgãos de segurança. E responsável por boa parte das torturas e desaparecimentos forçados que se deram, na época. O ato (informal) que celebrou sua criação deu-se em 01/7/69, contando inclusive com a presença de figuras das elites políticas (Abreu Sodré, Paulo Maluf) e empresários de São Paulo.
Tanto foi o sucesso (na versão das forças de segurança) do empreendimento que, em fevereiro de 1970, o major Waldyr Coelho (chefe de Coordenação de Execução da Central de Operações da OBAN) sugeriu, ao Comando do II Exército, a criação de uma OBAN específica contra a corrupção (documento ACE 16.645–70, Arquivo Nacional). Que era grande, claro. Sem sucesso.
Naquele tempo, a ideia de combater a corrupção se limitava a punir os que recebiam grana. Sem atingir empreiteiros ou militares que lhes davam cobertura. Talvez porque todos fossem velhos companheiros da Ditadura. Hoje é diferente. Nossas prisões passaram a ser frequentadas, também, por donos de construtoras e agentes políticos (que substituíram, na periferia do poder, aqueles militares). Pena que só por breve tempo, depois o Supremo decidiu que melhor irem todos para casa. Ou voltar a exercer cargos públicos. Sem esquecer que também estão, hoje, tentando cancelar suas multas. Uma vergonha, perdão por dizer.
Corrupção, pois, havia sim. Muita. No fundo, um desvio da própria natureza humana. Praticada, indistintamente, por homens e mulheres, pretos e brancos, civis e militares. Só que, nos anos de chumbo, não se sabia dos submundos do poder. Por conta da censura. Completa (quase). Enquanto, hoje, há liberdade na informação. Essa é a maior diferença. E ainda bem.
3. A ALMA HUMANA. A terceira lembrança diz respeito a pessoas. E faço isso contando o caso de dona Luiza Gurjão. Na Comissão Nacional da Verdade, encontramos restos de dois corpos. Um deles, pelas anotações que tínhamos, provavelmente seria de Bergson Gurjão, que desapareceu na Guerrilha do Araguaia. Convidamos sua mãe para fazer o teste do DNA. Dona Luiza, quando chegou, disse ter certeza de ser seu filho, era mesmo, e completou:
‒ Faz muitos anos, descobriram que eu tinha câncer. Com pouco tempo de vida. Mas, aos médicos, disse que só morreria depois de enterrar meu filho. Para mim, era missão. E essa fé acabou recompensada.
Mais tarde pusemos os poucos ossos que sobraram, depois dos exames, em caixão com areia. Para ficar mais pesado. E mandamos, bem vedado, para dona Luiza. Foi o velório mais festivo que já se viu, nas redondezas, todos contentes por ver a mãe realizando seu sonho de enterrar o filho. No fim do enterro, pediu a palavra.
‒ Esse é o dia mais importante de minha vida. Aqui está Bergson (e apontou para o caixão, na cova). Pertinho dele (indicou um espaço vazio), bem ao lado, ficarei eu. Os dois juntos, pela eternidade. Muito obrigado a todos.
Pouco depois jantou com a família, foi dormir feliz, em paz, e não acordou.
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