Luiz Alberto Machado, economista e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Por diversas vezes mencionei em meus artigos e comentários a importância educativa de viajar. Privilegiado, em grande parte graças ao basquete, por começar a viajar ao exterior desde muito cedo − numa época em que essa prática era restrita apenas aos integrantes de famílias abastadas −, recebi os benefícios dessas experiências em minha vida pessoal.
Viagens possibilitam vivenciar ou visitar fatos e/ou lugares relatados na escola, propiciando assim maior efetividade dos conhecimentos adquiridos na educação formal. Afinal, como já dizia Confúcio, que viveu de 551 a 479 a.C., “o que eu ouço, eu esqueço; o que eu vejo, eu lembro; o que eu faço, eu aprendo”.
Embora a possibilidade de viajar, tanto dentro do País, como para o exterior, tenha se ampliado consideravelmente, não é qualquer pessoa que pode realizá-la, desfrutando assim de seus inúmeros benefícios.
Existe, porém, em meu entender, outra forma de viajar sem sair do lugar. Isso ocorre por meio da leitura. Quando me refiro à leitura estou me referindo não à leitura obrigatória e superficial, feita muitas vezes compulsoriamente por determinação de um professor ou superior hierárquico numa corporação. Refiro-me à leitura realizada por prazer na qual o leitor mergulha no conteúdo do texto, viajando nas palavras e obtendo enorme satisfação à medida que vai avançando na trama, seja de um romance, de uma ficção, de uma biografia ou de um texto histórico, filosófico e até técnico-científico.
Se houver a conjunção do interesse do leitor e da capacidade e criatividade do autor do texto, temos então a situação ideal.
Reconheço que não é fácil chegar a ela, quer porque o número de pessoas com as características adequadas de um bom leitor seja limitado, quer porque a quantidade de autores que conseguem aliar conteúdo satisfatório e fluidez, elegância e acessibilidade aos seus textos também seja limitado.
Uma vez mais, posso me considerar um privilegiado, pois além de começar a viajar muito cedo, fui incentivado a ler por meus pais também desde a infância, prazer que se acentuou na adolescência e na juventude, com bons livros indicados por professores e amigos que compartilhavam desse mesmo gosto.
Como esquecer das “viagens” propiciadas pelos personagens dos livros de Monteiro Lobato, pelos Capitães da areia de Jorge Amado, dos textos de suspense de Agatha Christie e, mais tarde, pelas distopias de George Orwell, Aldous Huxley, Isaac Asimov e tantos outros.
Tornei-me um apaixonado pela leitura. Se não pude dedicar mais tempo a ela pelo volume de atividades desempenhadas ao longo de minha carreira profissional, estou procurando compensar com a maior disponibilidade de tempo decorrente da aposentadoria, ainda que continue na ativa por meio de atividades de consultoria e participação em conselhos de entidades, empresas e think tanks.
Recentemente, por ocasião do lançamento do livro Economania, do professor e colega Roberto Macedo (que, por sinal, ainda não li), fui questionado por nosso amigo comum Roberto Troster se eu gostava de ler. Diante de minha resposta afirmativa, ele me presenteou com um livro que relata a invenção dos livros no mundo antigo.
Confesso que ao ler a contracapa e a orelha, fiquei em dúvida se me interessaria pela leitura. Não poderia estar mais enganado. O infinito em um junco, de autoria da espanhola Irene Vallejo, consegue atingir todas as qualificações que caracterizam um grande livro: profundidade da pesquisa, interesse do assunto, fluidez e elegância no texto e, sobretudo, uma imensa criatividade da autora.
Dividindo o texto em duas partes − A Grécia imagina o futuro e Os caminhos de Roma −, a autora relata a incrível trajetória percorrida pelos livros pioneiros, em formato de tabuletas ou rolos, completamente diferentes dos de hoje, impressos ou digitais, fazendo-o com habilidade e entremeando o relato histórico com exemplos pessoais e inventivas comparações com situações contemporâneas.
Apenas para despertar o interesse e aguçar a ansiedade dos verdadeiros leitores, reproduzo um pequeno trecho do livro (p. 80):
A invenção do livro é a história de uma batalha contra o tempo para melhorar os aspectos tangíveis e práticos − vida útil, preço, resistência, leveza − do suporte físico dos textos. Cada avanço, por menor que pudesse parecer, aumentava a esperança de vida das palavras.
A seguir, ilustrando essa colocação, continua Vallejo na mesma página:
A pedra é duradoura, claro. Os antigos gravaram nela suas frases, como nós continuamos fazendo em placas, lápides, marcos e pedestais que povoam nossas cidades. Mas um livro só pode ser de pedra metaforicamente. A Pedra de Roseta, com seus quase oitocentos quilos, é um monumento, não um objeto. O livro tem que ser portátil, tem que favorecer a intimidade entre quem escreve e quem lê, tem que acompanhar o leitor e caber na sua bagagem,
Nos comentários inseridos no relato, Valllejo, que estudou filosofia clássica e fez doutorado nas universidades de Zaragoza e Florença, chama a atenção para o caráter inovador representado por personagens de diferentes épocas − escritores, bibliotecários, comerciantes − que, no manuseio de tabuletas ou rolos, tiveram de enfrentar infinitas questões com paciência e amor por detalhes minuciosos. Na execução dessa tarefas, foram responsáveis pela criação de coisas que utilizamos atualmente de forma automática, aparentemente muito simples, mas que exigiram grande inventividade quando de seu aparecimento.
A título de exemplo, Vallejo cita Calímaco, considerado o pai dos bibliotecários, que precisou criar um código de classificação das obras contidas na Biblioteca de Alexandria. De cada autor, Calímaco redigiu uma brevíssima biografia, pesquisou suas características distintivas − nome do pai, lugar de nascimento, apelido − e elaborou uma lista completa de obras em ordem alfabética. Como bem observa Vallejo (p. 163):
A ideia de usar o alfabeto para ordenar e arquivar textos foi uma grande contribuição dos sábios alexandrinos. Em nossa vida cotidiana, encaramos isso como algo tão comum, tão óbvio e tão útil que nem nos parece uma invenção. No entanto, trata-se de uma ferramenta − tal como o guarda-chuva, o cadarço dos sapatos ou a lombada dos livros − que alguém idealizou num momento de inspiração após uma longa busca. Alguns estudiosos pensam que essa genialidade simples pode ter sido exatamente o que Aristóteles ensinou aos bibliotecários de Alexandria. A hipótese é atraente, mas impossível de provar. De todo modo, o sistema se impôs graças aos intelectuais do museu. Nós, com um abecedário diferente, continuamos imitando esses procedimentos.
Encerrando o conjunto de citações escolhidas para aguçar o interesse dos verdadeiros leitores, um exemplo da Roma antiga que guarda estreita relação com a atualidade. Os responsáveis pela transmissão dos conhecimentos, os mestres-escolas antigos, em sua maioria eram escravos ou libertos, que realizavam um trabalho humilde e menosprezado. Os patrícios e aristocratas valorizavam o saber e a cultura, mas desprezavam a docência. Assim, conforme destaca Vallejo (p. 308), “dava-se o paradoxo de que era ignóbil ensinar o que era honroso aprender”:
Quem diria que no tempo da grande Revolução Digital voltaria a ganhar força a velha ideia aristocrática de cultura como um passatempo de amadores. A antiga ladainha ressoa outra vez, repetindo que se os escritores, dramaturgos, músicos, atores e cineastas querem comer, deveriam arranjar um ofício sério e deixar a arte para as horas vagas. No novo quadro neoliberal e no mundo em rede − curiosamente, como na Roma patrícia e escravista −, querem que o trabalho criativo seja gratuito.
Com este artigo, convido a todos a fazerem uma viagem pelas páginas de O infinito em um junco, que, como assinalou o jornal El País, é “uma homenagem ao livro escrita por uma leitora apaixonada”.
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