Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
A morte trágica recente de quatro policiais militares, em São Paulo, e as mortes de dezenas de suspeitos durante as Operações Escudo e Verão na Baixada Santista, em 2023 e 2024, chamam a atenção mais uma vez para o grave problema da letalidade policial no Brasil, onde as mortes em confrontos com a polícia representam cerca de 13,5% das mortes intencionais violentas no País, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
Comparando os dados de 2023 com o ano anterior, em São Paulo, as mortes em confronto cresceram 38% se considerarmos apenas os confrontos “em serviço” na Polícia Militar e 19% no total – incluindo Polícia Civil e folga – passando de 421 para 540 casos.
Mortes em confronto ocorrem em diversas polícias do mundo e na maioria dos casos são reações legítimas para a defesa da vida do policial ou de outrem, baseadas em princípios como necessidade e proporcionalidade, que orientam as regras de engajamento. Mas no Brasil existem fortes indícios de violações destes princípios e as estatísticas são um modo de aferir isto: em 1992, em relatório do NEV, usamos pela primeira vez os hoje clássicos indicadores de violência policial propostos por Chevigny (Kahn, 1993). Regra geral, no Brasil o número de suspeitos mortos é superior ao de feridos nos confrontos, o número de suspeitos mortos é bastante superior ao número de policiais mortos e a proporção de mortos em confrontos no total de homicídios é fora do padrão internacional.
No ano do massacre do Carandiru, quando calculamos os indicadores pela primeira vez, 1.359 suspeitos morreram em confronto com as polícias, as mortes em confronto representaram 14,9% das mortes violentas no Estado, o número de suspeitos mortos era 4,3 vezes superior ao de suspeitos feridos e 11 vezes superior ao número de policiais mortos. Em conjunto, esses indicadores sugeriam a existência de uso excessivo da força, ainda que se leve em conta o tipo de armamento e confronto igualmente atípico que se trava entre traficantes e as polícias brasileiras, quase sem paralelo mundo afora.
Nestes 32 anos monitorando violência policial, dentro e fora de governos, aprendi a ter algum cuidado com as interpretações de indicadores. Assim, por exemplo, quando o número de homicídios é decrescente, como ocorre no Brasil desde 2017 e em São Paulo desde 2003, a proporção de mortes em confronto no total de homicídios tenderá obviamente a cair, mesmo que a letalidade continue igual em números absolutos. Números brutos devem ser ponderados. Séries longas são mais instrutivas do que curtas e é preciso cuidado com anos atípicos.
Em São Paulo, nos últimos 28 anos e ilustra bem o primeiro ponto. Os homicídios caem de 11.555 para 2.606 no período, uma redução de 77%. As mortes em confronto no mesmo período caem 19%. Assim, a proporção de mortes em confronto cresce não apenas porque a letalidade policial cresceu em termos absolutos, mas principalmente em função da queda intensa dos homicídios.
O percentual médio histórico de mortes em confronto nas mortes totais é de 11% em São Paulo e chegou a quase 15% no ano passado, o que representa um exagero quando comparamos com outros países. Nos Estados Unidos, cuja polícia está longe de ser um exemplo de civilidade, essa proporção é de aproximadamente 3,6%. No estudo de Hirschfield, incluindo 19 países europeus e latino-americanos, o Brasil só perde para a Venezuela na taxa de violência policial fatal por milhão de habitantes, indicador que permite comparar Estados e países. (Muniz e Soares, 1998; Zilli, 2018; Hirschfield, 2023).
A quantidade absoluta de mortes em confronto muda de patamar a partir de 2014, quando tem início a crise econômica do País e a criminalidade cresce nacionalmente e cai apenas a partir de 2021, quando uma série de medidas de controle passa a ser adotada pelo governo estadual, a mais conhecida delas a adoção das câmeras corporais nos uniformes dos policiais.
O primeiro ano da nova gestão estadual, 2023, mostra como vimos um crescimento do número absoluto de mortes em confronto comparado ao ano anterior, embora o patamar tenha ficado abaixo do observado no período 2014 a 2020, quando as mortes em confronto chegaram a representar um quarto das mortes no Estado. Na verdade, 2022 é que parece um ano atípico na série, fazendo com que a comparação com 2023 fique inflacionada. Para monitorar o fenômeno da violência policial de modo mais abrangente, convém olhar para outros indicadores e séries históricas mais longas.
Quando observamos as séries históricas de dois outros indicadores ponderados – a média de mortes em confronto por 1.000 prisões e por 100.000 habitantes – vemos que 2023 não difere substancialmente dos dois anos anteriores e os valores estão abaixo da média da série histórica.
A relação entre suspeitos mortos e feridos é invertida em São Paulo e na maior parte dos Estados brasileiros (mais mortos do que feridos nos confrontos) – o que é uma evidência de excesso – mas 2023 está igualmente dentro da média histórica do Estado (1,3) e abaixo do período 2019 a 2021. A relação entre suspeitos mortos e policiais mortos ficou em 32:1 no ano passado. A razão ficou acima da média histórica (23:1), mas a piora do indicador parece vir pelo menos desde meados de 2012 e o valor de 2023 é menor do que dos anos anteriores.
Longe de querer minimizar o grave problema, mas olhando em longo prazo os indicadores em conjunto e friamente, não é possível dizer que há uma quebra de padrões de letalidade em 2023 ou algo muito atípico na tendência, não obstante o elevado número de fatalidades nas operações Escudo e Verão na Baixada Santista. A principal mudança tem sido no discurso das autoridades com relação ao tema do controle das policias e isso pode trazer sérias consequências futuramente. São Paulo viu isto acontecer em 2012.
Minha hipótese é de alguns dos mecanismos de controle da violência – ouvidoria, corregedorias, procedimentos padrão, comissão de conformidade, câmeras nos uniformes, cultura de legalidade, armamento menos letal etc – estão relativamente institucionalizados e ainda em funcionamento, atuando como contrapesos. Uma mudança de discurso e postura da gestão superior não altera de imediato os padrões de letalidade. Mas pode mudar com o tempo e com o relaxamento dos controles.
É muito raro que políticas de segurança pública consigam alterar a trajetória de indicadores criminais, como roubos e homicídios, que são influenciados de modo determinante pelas condições socioeconômicas e demográficas. As mortes em confronto são uma exceção: trata-se de um dos únicos indicadores que estão sobre relativo “controle” dos gestores estaduais. Palavras e ações podem ter consequências funestas aqui, algo que já foi observado empiricamente em diversos Estados e períodos e se aplica tanto a São Paulo quanto à Bahia, recordista atual de mortes em confronto com a polícia.
Morrer em confronto com a polícia, para criminosos, faz parte das “regras do jogo”. Mas quando são percebidas como excessivas e desleais, vitimando desnecessariamente membros das comunidades, podem provocar uma forte reação do crime organizado, como em 2006 e 2012 em São Paulo. (Oliveira Junior, 2008; Gloekner e Gonçalvez, 2017; Battibugli, 2021).
Consequências funestas não apenas para os suspeitos, mas também para policiais, para as polícias enquanto instituição, para o governo e para a própria sociedade, apesar dos clamores populares por vingança contra o crime.
Não pode ser a quantidade de mortes o elemento diferenciador entre as forças de segurança e as facções criminais, mas sim o respeito ao estado de direito e à lei. Bobbio relata que Felipe da Macedônia perguntou certa vez a um pirata porque ele insistia em atacar seus navios e cidades. Ao que o pirata teria então respondido: pelos mesmos motivos que você, mas como tenho apenas um navio sou chamado de pirata enquanto você, que tem uma frota, é chamado de almirante. O que ele argumentava é que a diferença entre eles era meramente quantitativa, uma vez que a motivação e os métodos eram os mesmos. Se não existe uma diferença qualitativa entre polícias e o crime – que deve ser o respeito ao Estado de Direito e aos direitos fundamentais – somos todos piratas, apenas com mais ou menos navios.
Referências
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