José Paulo Cavalcanti Filho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Na última quarta-feira (16), Millôr Fernandes teria feito 100 anos. Uma data memorável. Por ser gênio e único. O primeiro cidadão a nascer Milton e ser enterrado como Millôr, culpa do tabelião que trocou, um “T” pelo “L”. Acontece.
Nossa relação, bom lembrar, começou nos tempos do Ministério da Justiça. E foi tumultuada. No restaurante do Hotel Ouro Verde (Avenida Atlântica, Rio) se daria, num almoço, homenagem que a classe artística me prestaria. Pelo fim da censura, tão presente nos tempos da ditadura militar. Coordenada por Grande Otelo e Ziraldo, orador seria Millôr Fernandes – que, na hora do evento, mandou esse bilhete (guardei):
– Ziraldo. Pensei melhor e não vejo razão para prestar homenagem a uma pessoa jurídica (?). Faça você mesmo a saudação. Além do mais, esse amigo seu deve ser um chato e não perco nada em não o conhecer.
Correu tudo bem. Ziraldo fez belo discurso e agradeci a presença de todos. Dia seguinte, mandei carta para Millôr (naquele tempo, não havia internet).
– Caro Millôr. A gente se engana. Pensei que você era inteligente, erudito, gênio, agradável, e que seria muito bom lhe conhecer. Nada. É só um chato!, convencido!, presunçoso!, pernóstico!, idiota!. Você disse que não perderia nada em não me conhecer? Pois menos ainda perderei eu em não lhe conhecer.
Alguns dias mais, bilhete de Millôr:
– Caro José Paulo, a gente às vezes se excede. Parece que foi meu caso. Peço perdão pela grosseria. Proponho um jantar, para que façamos as pazes. E, como o agressor fui eu, pago a conta.
Respondi com outro bilhete:
– Caro Millôr, de você quero apenas uma coisa. Por favor, vá para o inferno.
Sem resposta. Pouco depois, o querido Técio Lins e Silva convidou Maria Lectícia e a mim para jantar. No Arlecchino, se a memória não falha. À entrada do restaurante, ele e Millôr. Explicou:
– É para vocês fazerem as pazes.
Correu tudo bem. Nesse encontro, Millôr explicou haver dois tipos de pessoas. Os iguais e os diferentes. Iguais, para ele, seriam os que vão a botecos baratos, sexta de noite, falar mal do governo e de todo mundo. Enquanto diferentes são… diferentes. E esses grupos não se dão. Como estávamos os dois nessa última categoria (segundo ele), dos diferentes (claro), nascemos para andar juntos. E acabou sendo mesmo um dos grandes amigos que tive, pela vida. Tanto que, todos os janeiros, passava temporadas em nossa casa de praia na Lagoa Azul.
Seguem alguns casos dele.
Todos os 16 de agosto nos reuníamos. Naquele ano também, seu aniversário dos 70 anos, com festa no apartamento de Eliana e Chico Caruso. Lá, gente de todas as tribos: de João Ubaldo Ribeiro a Geraldinho Carneiro, de Paulo Francis (NY) ao embaixador José Aparecido (então morando em Lisboa), de José Lewgoy a nós (Recife). Quando foi apagar velas, Millôr pediu a palavra:
– Estou emocionado. Trata-se de um momento único. Que, é a lei da vida, isso não vai se repetir por muito tempo mais.
Baixou a cabeça, como se fosse chorar. E era mesmo natural. Por ser, provavelmente, o mais velho no recinto. Protestos gerais. Que é isso?, Millôr. Quando se fez silêncio, completou:
– A vida é breve, sei bem. Não há como alterar o destino. Mas quero só dizer uma coisa, meus amigos. Quando o último de vocês morrer, e eu tiver de comemorar aniversário sozinho, vou sentir muitas saudades.
***
No mar da Lagoa Azul estavam Ariano Suassuna, Millôr e este que aqui escreve. Todos, falantes empedernidos. Mais Luis Fernando Verissimo (que não fala, mas sabe escutar como ninguém). Cora Rónai queria entrar na conversa, não conseguia e disse com raiva:
– Cuidado comigo, Millôr, que sou uma mulher cara.
– Querida, na minha idade, ou é cara ou é coroa.
***
Na mesma Lagoa Azul, de vez em quando, tem andada dos siris. Põem os ovos, partem do mangue e vem se lavar no mar; depois, usando palavras de Pessoa (Caeiro, no Guardador…), “para de onde vieram, voltam depois”. No trajeto, com frequência, passam por dentro de nossa casa. Com recomendação, aos funcionários, para não serem incomodados. Noite dessas, grito pavoroso. De Guga, mulher do arquiteto Paulo Casé, que saiu do quarto com um siri pendurado na orelha. Dei um tapa e ele voou. Millôr, espectador da cena, completou
‒ Siri melhor quem siri por último.
* * *
Quando um dos amigos dizia:
– Vou fazer aniversário amanhã.
Ele respondia, sempre:
– Tomara.
* * *
Pouco antes de ir para o céu, se existir mesmo um céu, pediu gravador e deixou essa mensagem
‒ Se me acontecer alguma coisa, tenho certeza que darei tristeza grande a cinco ou seis pessoas; razoável, a mais dez pessoas; e alegria, para muita gente. Agora, a grande vantagem de alguma coisa me acontecer é que nenhum filho da puta mais vai me pedir para escrever um prefácio.
* * *
Nesta segunda ligou Ricardo Cravo Alvim, presidente do PENN CLUB do Brasil (importante entidade de escritores). Anunciando cerimônia para entregar, à família, diploma de Sócio Póstumo Bertrand Russel a Millôr. E pedindo a alguns membros, mais próximos dele, que dessem um breve depoimento para ser lido na sessão em sua homenagem. Mandei essas palavras:
Millor era amigo certo de amigos incertos.
Homem reto, apesar do empeno da coluna.
Que sentia dores e quase todos os seus derivativos ‒ sobretudo amores, andores e ardores.
Apreciador de bolo de rolo; e, para ser justo, de outros bolos e outros rolos.
Alguém que acreditava na bolsa dos valores e nas boas ações.
Que não gostava de roubar nem o tempo dos outros.
Magro, no corpo.
E gordo, nos sentimentos.
Pobre, mas não de espírito.
E rico, até de ilusões perdidas.
Homem justo, em uma vida injusta, onde os dias passam tão devagar e os anos passam tão depressa.
Dizem que Millôr morreu? Impossível. Que Millôr é terno. Eterno. Viva Millôr.
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