Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Edição Scriptum
Diversos levantamentos e estudos tem procurado entender a motivação por trás dos muitos homicídios no Brasil. Chamamos de “levantamentos” os dados compilados pelas polícias e órgãos do sistema de justiça criminal, e de “estudos”, o material de cunho mais acadêmico. Grande parte dessa literatura – em especial os levantamentos feitos pelas polícias – e da mídia tende a privilegiar o papel das disputas entre as facções ligadas ao tráfico de drogas neste problema. Papel que é significativo, mas está longe de esgotar a questão das motivações ou das dinâmicas por traz das tendências dos homicídios.
O problema é que não temos nenhum estudo abrangente, nem metodologias e categorias padronizadas, que tenha produzido uma estimativa consensual. Analisando esta literatura, encontrei dezenas de classificações diferentes e agrupei as diferentes categorizações em 14 motivos principais. Entre eles – além das mortes entre traficantes e usuários relacionadas a drogas – temos:
* As ações de gangues em disputas por mercados além das drogas, como é o caso das milícias ou organizações focadas em outros crimes, como roubos a banco ou carga. Disputas pelo poder dentro e fora das penitenciárias podem ser incluídas nesta categoria.
* Temos os crimes provocados por vingança e acerto de dívidas, principalmente entre grupos criminosos. E as vinganças interpessoais ligadas a questões de honra e masculinidade.
* Os desentendimentos fúteis entre desconhecidos, não premeditados, como as brigas de bar e de trânsito estimuladas pelo consumo de álcool.
* Ainda, os homicídios passionais e domésticos, também no grupo dos assassinatos não premeditados e interpessoais. Os feminicídios, antes simplesmente homicídios de mulheres por motivo fútil (ciúme) ou torpe, entram nesta categoria.
* Os latrocínios.
* As mortes praticadas em legítima defesa própria ou de outrem.
* As mortes por ambição, cujo objetivo é o de apropriação de terras, minérios, bens, heranças, seguros e outros bens patrimoniais.
* A pistolagem de cunho político.
* As mortes em confronto com a polícia.
* As balas perdidas e erros de pessoa.
* Os casos ligados a homofobia ou racismo.
A lista está longe de ser exaustiva (ou mutuamente exclusiva) e inclui grandes categorias, nas quais:
* A motivação simplesmente não pode ser classificada por falta de informações ou foi classificada em “outros”, como por exemplo os homicídios sexuais ou onde o autor sofria de sérios problemas mentais, os ataques coletivos em escolas, assassinatos seriais e diversas outras situações onde a pequena quantidade de casos não justifica a criação de uma nova categorização.
Além da diversidade de categorias, as pesquisas são também bastante variadas no que diz respeito às metodologias, amostras, fontes, áreas e períodos em que foram realizadas. A diversidade é grande ao ponto de ser temerária qualquer comparação ou “consolidação” dos achados, do tipo que pode tentar em meta-análises ou revisões sistemáticas. Resumindo alguns dos problemas de comparabilidade dos 45 trabalhos encontrados, observamos que:
* Categorias de motivos utilizadas nos estudos para a classificação dos homicídios são diferentes em quantidade e definições; o número de categorias variou de cinco a 14, com média de 8,1; quanto maior o número de categorias, maior a fragmentação de cada uma.
* Categorias não são mutuamente exclusivas; há uma mistura de motivos, com modus operandi (execução), local (estabelecimentos penitenciários) ou tipo de executor (milícia).
* Alguns estudos focam apenas nos homicídios dolosos (art. 121), enquanto outros analisam outras mortes violentas, como latrocínios e confrontos com a polícia.
* Alguns estudos trabalham com amostras que podem ser enviesadas (departamento de homicídios, que privilegiam autoria desconhecida), enquanto outros trabalham com o universo dos homicídios em determinado ano e local.
Alguns estudos analisam dados de cidades, especialmente capitais e Regiões Metropolitanas – onde o tráfico tende a ser mais relevante – e outros dados de Estados.
* As fontes podem ser diferentes: uns usam BOs e outros Inquéritos ou laudos do IML.
* Períodos são diferentes e frequências em cada categoria podem mudar nos diferentes períodos, segundo os interesses da conjuntura.
* Alguns estudos calculam as porcentagens das classes utilizando todos os homicídios e outros utilizando apenas os homicídios para os quais existe uma classificação de motivação conhecida. A frequência de cada categoria varia bastante, dependendo da taxa de esclarecimento local.
* Perfil dos homicídios muda conforme a região e em alguns Estados as causas são bastante específicas, tais como conflitos agrários (Norte e Nordeste), bala perdida ou ação das milícias (Rio de Janeiro).
* Com todas estas diferenças, é fácil entender porque as conclusões são muitas vezes díspares – com a categoria “tráfico” variando de 0% a 78% na participação nos homicídios – e as dificuldades em tentar algum tipo de comparação ou consolidação dos resultados. A variação é enorme e isso provavelmente tem relação com as diferenças metodológicas entre os levantamentos e estudos, diferenças regionais e outras acima elencadas.
É como tentar medir “inflação” usando diferentes definições, cesta de produtos, lugares e períodos. Dificilmente conseguiríamos traçar uma política de combate à inflação e essa é umas das muitas razões pela qual o País falha na elaboração de uma política pública consistente de combate aos homicídios.
Feitas estas admoestações, e apenas para satisfazer a curiosidade do leitor, observamos que a média de motivação “tráfico” foi de 32% e a mediana 30% – sabendo que comparamos bananas e maçãs e ainda algumas carambolas.
Algumas considerações sobre o material que julgo apropriadas:
- As pesquisas acadêmicas mais “robustas” parecem produzir estimativas ao redor de 20% e 30% (Scorzafave, Cerqueira, Campagnac, Lima, Sapori, Dirk, Mingardi, etc.). Não sabemos se a estimativa de 30% obtida é apropriada. Mas sabemos, com grande probabilidade, que ela não é 0 nem 78%;
- Os “levantamentos” produzidos pelos órgãos do sistema de justiça tendem a sobrevalorizar o papel do tráfico e drogas como motivação (média de 41,7%), enquanto os “estudos” de cunho acadêmico observaram médias bem inferiores (média de 24,7%);
- Foram feitos no Nordeste 13 dos 45 trabalhos e a media de “tráfico” cresce para 37% na região. No Sudeste (16 trabalhos), a média foi de 30%;
- Existe um grande número de homicídios sem motivação conhecida, como discutido. Há maior chance de eles estarem relacionados ao tráfico, mas também a disputas entre outras “gangues”, “ambição”, “mortes pela polícia” ou diversos outros crimes premeditados e “bem” executados. Sim, a motivação “tráfico” deve estar subestimada, mas não há razão para alocar todos os casos “sem motivação conhecida” apenas nesta categoria.
Existem muitas “narrativas”, para usar um termo que se tornou corrente, sobre o papel preponderante das facções ligadas ao tráfico na dinâmica criminal extramuros, seja para explicar quedas ou aumentos dos homicídios, conforme a conveniência da conjuntura. Embora significante, a dinâmica das facções e seu papel na dinâmica dos homicídios – que é clara para certos Estados e períodos – não é o único motivo explicativo para o fenômeno, como eu e diversos outros analistas insistimos.
Um passo importante para avançar nesta polêmica seria realizar um grande estudo nacional sobre essa lacuna no conhecimento criminológico. Em algum momento, o governo federal e/ou grupos de pesquisa deverão definir categorias de “motivações”, definições e metodologia unificadas para conseguirmos uma aproximação mais fiel do papel das facções ligadas ao tráfico na dinâmica dos homicídios. Pois o que temos no momento são estudos locais e parciais, não comparáveis e tampouco generalizáveis.
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