José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Recife. De volta à terra prometida (ir é bom, mas voltar é melhor, muito melhor), já digo que hoje este texto vai assinado pelo mestre Samuel Hulack ‒ que, agora, lança o seu primeiro livro de literatura, Na contramão e outros contos. De repente, como por encanto, do nada, ele decidiu escrever contos. O que é surpreendente, dado seu tardio começo na atividade literária (aos 86 anos). Alguém que jamais fez nada parecido, antes, por que agora? Mistério. Embora mistério ainda maior, aquele que poucos poderiam esperar, é a qualidade superior dos seus textos. Como os desse livro; talvez escrito apenas para provar, a si mesmo, que tem o dom especial de contar histórias. Como um grande escritor. Enorme. Estelar. Para mim, o maior contista do Brasil. É dele o conto que vem a seguir, razão pela qual lhe passo a palavra:
“Na contramão
Era um homem velho. Demasiadamente, até. Arrastava-se curvado sobre a própria sombra. Nas cercanias não havia ninguém, o que aumentava a solidão expressa na sua frágil figura.
Apenas alguns sons.
Marina, que aguardava o velho, viu algo na comédia televisiva que assistia.
Já próximo, o homem ouviu a risada sonora de Marina.
‒ “Pai, que bom que chegou. Deixe que ajude a descarregar sua sacola”.
Sentaram-se para comer os sapotis ainda impregnados pelo cheiro da terra e do pano da sacola.
O casebre pobre, mas muito limpo, tinha sala, cozinha, banheiro e dois quartos. Marina foi morar com o pai – há muito enviuvado – quando deixou Beto; ele traficava, ela descobriu e aproveitou para sair da favela. Agora, cuidava do pai, cozinhava e assistia comédias e novelas.
Foram várias as vezes que sua mãe lhe dizia: “Marina você é maninha, não vai ter filhos nunca; namoradeira como é não engravidou, não vai saber o que é parir”. Realmente não teve filhos nem antes do Beto e muito menos depois. Foi cozinheira depois faxineira, em casa de família. Agora, deu um tempo. A aposentadoria do pai sustentava os dois. Precariamente, mas valia.
O tempo percorria plácido na medíocre rotina do velho Raimundo e de Marina. Nem tudo sempre bom, nem sempre tudo mau. Até que os altos e baixos sofreram uma ruptura.
‒ “ Alô Marina, com saudades?”
‒ “Beto, você aqui? Como me descobriu?”.
‒ “Não foi difícil achar seu pai”.
– “O que você quer? Boa coisa não é.”
‒ “Vou sumir um tempo pra depois voltar e preciso deixar uns bregueços com você.”.
‒ “Beto, nem pensar. Não quero confusão, nem pra mim nem pra meu pai.”.
‒ “Marina você não entende; não posso confiar em ninguém. Com você, minha muamba estará segura até eu voltar.”.
‒ “Beto, não faz isso comigo. Meu pai está velho e fraco e não quero que ele saiba que você voltou”.
‒ “Marina você continua sem entender; por enquanto estou pedindo um favor, mas, na recusa, vai ter que aceitar na marra e você sabe que meu jeito nem sempre é bom”.
‒ “Quando volta para pra levar a sua tralha?”.
‒ “Não sei Marina; nem sei quando, nem posso dizer onde vou ficar”.
Beto passou para ela uma das malas que carregava. Dentro, uma arma, alguns sacos de cocaína e documentos. Feita a entrega e algumas ameaças mais, montou na moto e partiu.
Beto cresceu na contramão da vida. Tinha seis anos quando já invejava os colegas “aviãozinhos” da favela; cobiçava o poder e o dinheiro que ganhavam. Na adolescência seus ídolos eram os traficantes. Não demorou em tornar-se um. Quando Marina fugiu Beto cresceu na atividade criminosa; ganhou muita grana e assim foi até se desentender com um rival, na disputa por ponto de venda de drogas. Na briga, matou o desafeto. Teve que fugir; ficara entre dois fogos, os traficantes e a polícia. Juntou a muamba, a pistola, dinheiro e algumas joias e partiu atrás do paradeiro do velho Raimundo. Para encontrar Marina.
Agora, na moto iria para o interior das Alagoas, onde parentes o acolheriam. Saindo da casa de Marina, teria que fazer um desvio para pegar a estrada; era uma contramão deserta. Distraído, em velocidade, não viu o arame estendido de canto a canto. Novamente Beto que viveu na contramão da vida, morreu nela. Morreu tão instantaneamente que não pode ver o vulto que recolheu o arame que estendera.
Era o vulto de um homem velho, demasiadamente até; arrastava-se curvado sobre a própria sombra. Nas cercanias não havia ninguém, o que aumentava a solidão expressa na sua frágil figura”.
P.S. Hoje, a partir das 18:30hs, noite de autógrafos na Academia Pernambucana de Letras (Av. Malaquias). Sugiro ao amigo leitor que apareça e adquira, um exemplar, nem que seja para ver se tenho (ou não) razão no elogio. Viva Samuel Hulack!!!”
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