José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Edição Scriptum
Surpresa, para o mestre (José) Ortega y Gasset (A rebelião das massas), “é começar a entender”. E uma das surpresas, no Brasil de hoje, é o fato de haver no Congresso duas Propostas de Emenda Constitucional quase idênticas, uma da Câmara dos Deputados (PEC 28/2024) e outra do Senado (PEC 8/2021) ‒ esta já aprovada e enviada para votação, na Câmara, em dezembro de 2023. É aquela com que o presidente da casa, Arthur Lira, revida uma decisão do Supremo que vetou as tais “emendas impositivas”.
Mas de que tratam?, eis a questão. É que, sobretudo no Supremo, vem sendo cada vez mais frequente ver seus ministros, em decisões monocráticas, declarando serem algumas leis inconstitucionais. Entre outros absurdos, perdão por dizer. E por que seria este mais um absurdo?, amigo leitor. Por uma razão claríssima. É que, simplesmente, isso não podem fazer sozinhos, como vem se dando. Basta ver o artigo 97 da nossa Constituição:
“Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros… poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei”.
Trata-se, volto a lembrar, do único tribunal do planeta que admite julgamentos por um só juiz. E não são poucos. A partir dos últimos números disponíveis (2020), são 81.356 decisões monocráticas em um total de 99.564 processos julgados. Um escândalo, não pode haver dúvidas, que vem sendo feito por quase todos. Razão pela qual nos vêm três perguntas:
1. Por que fazem, sabendo que não podem fazer?
2. Como os demais ministros (é de se admitir) sabem que não podem fazer, por que todos se calam quando feito por um vizinho de curul (aquela poltrona em que sentam)?
3. Quem controla o órgão que tem o poder de cumprir a Constituição, quando é ele próprio que a descumpre?
Sem respostas decentes para elas, assim creio. Com essas PECs pretendem, deputados e senadores, deixar ainda mais explícito o que já está claríssimo na Constituição. Esperemos que funcione. Embora lamente que ainda não esteja em debate a única proposta realmente importante ‒ a de converter o Supremo em uma Corte Constitucional, deixando de ser uma instância revisora do terceiro grau (STJ). Atuando apenas em questões sobre nossa Constituição. E sempre em decisões coletivas. Como todas demais cortes constitucionais, no mundo.
Não ficam por aí os absurdos, amigo leitor. Semana passada, a Folha de S.Paulo deu notícia de áudios em que se constata funcionários do TSE cumprindo ordens de seu então presidente, Alexandre de Moraes, inventando provas. Sejam criativos, assim confessaram ter sido recomendado pelo ministro Alexandre de Moraes. Em palavras de Merval Pereira (O Globo), por tudo estar muito “escancarado, chegam a sugerir inventar um e-mail para que a denúncia pareça vir de um anônimo, e não do próprio Alexandre de Moraes. É claro que aí tem alguma coisa errada”. Tem mesmo.
E tudo num inquérito secreto que já prendeu milhares de brasileiros e censurou outros milhares (sobretudo aqueles que o criticaram), conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes desde 2019. Sem fim. Enquanto viver ou se aposentar, no íntimo sonha. Em si mesmo, outra violação aberta da Constituição; que o Supremo (art. 102) apenas tem o poder de julgar, enquanto fazer inquéritos é atribuição exclusiva do Ministério Público (art. 129).
O ministro responde sustentando que o TSE tem “poder de polícia”. Só pode ser brincadeira. Ou a impunidade lhe subiu à cabeça. Que a jurisprudência pacífica do Tribunal indica se possa usar, esse poder, apenas durante as eleições. E só nos temas que disserem respeito a elas. Basta ver que o ministro Fachin, do mesmo TSE, no AI 47738, decidiu assim: “O poder de polícia eleitoral… está relacionado à propaganda eleitoral”. Ponto final.
Engraçado é que as ordens de agora violam não apenas essa reiterada jurisprudência do TSE, como decisão do próprio ministro Alexandre de Moraes quando votou, no AgR‒REspEL nº 22.728, “O poder da polícia para coibir irregularidades no curso da campanha (só durante as campanhas, o ministro antes reconhecia) de modo algum autoriza a atuar na produção de provas para instituir processo judicial futuro ou em curso”. Em resumo, a decisão que tomou antes não vale mais. Por contrariar seus interesses presentes. Trata-se de algo sério? É possível ir tão longe? E todos calados?, quanto a isso.
A OAB Federal deveria liderar campanha contra essas decisões autoritárias do Supremo e em defesa da Constituição. Só que ela já não é a de Faoro. Mas se Brasília não fala e segue muda em um silêncio cúmplice, nestas e em outras matérias (sobretudo agredindo a liberdade de expressão, ao censurar todos que criticam o Supremo ou seus ministros), as OABs dos Estados falam por ela.
Como aqui vem se dando, reiteradamente, com nosso presidente Fernando Ribeiro Lins, agora contra (mais uma) invasão de competência do ministro Alexandre de Morais. É dele essa afirmação:
“O Supremo precisa seguir ritos de formalidade que mais na frente não sejam contaminados, reconhecidas suas irregularidades na produção de provas. E não houve a formalização desses atos. Somos (a OAB) uma ordem que… se agiganta em defesa das prerrogativas. E nenhuma delas é mais relevante que ver, em ação, nossa Democracia”. Parabéns, pois.
Esse louvor de independência ocorre, também, nas Minas Gerais. Peço licença, ao amigo leitor, para lembrar discurso de seu presidente, Sérgio Leonardo, na 24ª Conferência Nacional de Advogados, realizada em seu Estado. Presente, à mesa do evento, o presidente do Supremo, dando ainda maior importância à sua fala. Disse ele:
“A advocacia merece respeito. E se o que a vida quer da gente é coragem, como dizia Guimarães Rosa, essa advocacia não é profissão de covardes, como pontuava Sobral Pinto. Dizemos respeitosamente, mas alto e bom som, que os excessos que vem sendo praticados por magistrados nos tribunais superiores nos causam indignação e merecem nosso veemente repúdio. Nós somos essa voz e essa voz não pode e não será calada”.
Falou por todos, nós advogados. E pelos brasileiros que respeitam, e querem ver respeitada, nossa Constituição. Por fim, como quem percorre um cordão sem ponta, retomamos à citação de Gasset, no início do texto. Para dizer, com ele, que “tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par de pupilas bem abertas”. Como um convite, a todos nós, para abrir os olhos. E esses olhos abertos com que vemos o Brasil de hoje, embora com desalento, são os olhos da Democracia.
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